Queremos partilhar aqui umas breves considerações sobre as imagens que Isabel Baraona teceu para acompanharem as páginas de um longo conto, quase novela, da escritora Djaimilia Pereira de Almeida. Com pouco mais que cinquenta páginas, este caderninho oferta-nos uma narrativa acompanhada por 19 imagens que com ela estabelecem o que podemos chamar de harmonia enigmática. “Harmonia”, pois a combinação entre um e outras não é apenas física – por mais bem arranjado graficamente que o livro esteja, e está – mas por fundarem uma concordância justa e profunda. Porém, “enigmática”, cujo sentido grego original significa “falar obscuramente”, e há uma trama de invisibilidade, de indecibilidade, que não nos permite naturalizar a sua relação...
O conto é uma história crua, violenta, e torno de uma personagem menina, pequena, nada frágil, mas bem pelo contrário energética, aberta ao mundo, mas que encontra na sua madrinha, antagonista quase unidimensional da maldade, não somente um entrave, mas uma força destruidora, que a procura aniquilar no que mais íntimo existirá. A estrutura, e até certo ponto, algumas das passagens frásicas, de Toda a ferida é uma beleza, segue aquelas de um conto folclórico, quase de fadas. Mas de quando em vez, ganha outros níveis, ora agora mais alegórico, ora agora mais de fantasia contemporânea, mas sempre com uma urgência de mensagem no presente. A sua divisão em pequenas partes – não diria capítulos, não há organizações formais costumeiras – torna-as pequenos momentos de relançamento, respirações, passos, que a um só tempo aceleram a leitura e ajudam a focar.
A história parece não ter uma inscrição cultural específica, usando uma estratégia de ambiguidade que torna a narrativa ambivalente nas suas circunstâncias de tempo e lugar. Não quer dizer que seja automaticamente “universal”, mas permite um espelhamento e facilidade de entrada aos seus leitores variados, seguramente. Existem aveleiras, e cerejas, crescem margaridas nas estradas, os ciganos habitam perto... Poderei ler ferida como esperaiando-se numa paisagem rural, antiga, portuguesa? Mas esta é uma cultura podre, ensimesmada, egoísta, tristonha, anti-alegria, anti-mulher, que não quero acreditar ser minha. Apetece empurrá-la para outras paragens, que não minhas. E que faço? Empurro-as para as (minhas construções sociais) ideias do “interior tacanho”, “comunidades menos educadas”, o “país África”, “o Islão”, “a Outrolândia”? Se o fizer, estou na verdade, e enfim, a fazer nada mais que uma defesa minha, nossa, de queremos apontar que aqui, entre nós, não se passa nada de negativo. São os outros.
A escrita de Djaimilia Pereira de Almeida, aquilo que nos oferta, contudo, é uma forma subtil de nos armadilhar. Não de “nos tirar o chão dos pés”, mas antes pelo contrário abrir-nos os olhos ao local em que temos os pés. A ideia é de não nos dizer directamente que nos implica, que é connosco, que é em nossa casa que isto se passa, pois a autora, ou melhor o seu texto, quer que sejamos nós mesmos a descobri-lo. Se ficarmos envergonhados, é meio-caminho para a consciência.
Há que revelar, porém, que há um final feliz. Mágico, participando do maravilhoso, mas justo, pois é para isso que os contos de fada servem.
As imagens de Isabel Baraona não se arregimentam para “ilustrar”. Se este texto poderá seguramente re-existir sem as imagens, as imagens vivem igualmente uma autonomia matérica, ainda que partilhem as alianças dos ciclos ou das séries artísticas. Mas é a tal “harmonia enigmática” entre as duas dimensões que levam a leituras mais implicadas. As imagens, como é costumeiro do trabalho de Baraona, apresentam-nos sobretudo corpos, desenhados em linhas a pincel, por vezes outras técnicas, como dedos carimbados, aguadas, repassagens de tinta, linhas finas, mal delineadas e já em presença total, com um peso gravítico assinalável, a materialidade viva do corpo tornada real. Acompanhando alguns dos trechos do texto mais de perto, esses corpos sentam-se, deitam-se, sonham, voam, deixam crescer os cabelos, mostram os detalhes da nudez ou ocultam-se em silhueta. Fazem-se rodear de letras, algumas das quais reconhecíveis, em palavras quase decifradas e logo explodidas em significados diferentes, linhas serpeantes, chamas, auréolas e nimbos de cor, volutas e redemoinhos de traços que mantêm uma presença paralela mas confundem-se em formas orgânicas. E se num momento ganham os traços mais decididos e próximos da protagonista, quase em retrato realista, em muitos dispensam as características sexuais, ou até pormenores humanos: linhas do rosto, olhos, interior.
No conto, há um momento em que a protagonista perde a mão, derradeiro castigo cruel da madrinha, e tentativa desta em cercear a ligação que a criança possui com um outro mundo de expressividade a que a madrinha não tem acesso. No livro, essa esfera é a da escrita, do jogo da inscrição, do rabisco que se sonha palavra, do assémico que vem prenhe de significados, e sobretudo de alegria. Essa mão é enterrada. Nada cresce nessa campa. Mas Baraona dá-lhe uma outra vida. A mão é canteiro de novas flores. É elo de ligação entre o sono e o sonho. É um coração que abarca a menina. Se num momento essa mão estava rodeada de símbolos (desenhados, mas que social e semioticamente consideramos “símbolos escritos”; nas páginas 12, 15, e sobretudo 18), ela depois, ausente, liberta figuras (“ícones”, “desenhos”, “bonecos”; pg. 49). A mão que escrevia, redivive. E se não escreve agora, desenha.
As imagens de Isabel Baraona participam aqui da natureza análoga às dos cogumelos ditos “véus-de-noiva”, que possuem uma estrutura externa em forma de rede, ou saiote, chamada indusium, que estende uma camada cheia de buraquinhos. Mas isso não são “falhas” ou “problemas” ou “ausências”; esses buracos são parte estruturante da película, são parte integral do todo. Não é essa a mesma matéria continuada das palavras de Almeida, pela “falta” dos pormenores? Não esse o intervalo de dúvida no qual nos podemos entrosar e preencher?
Alguns leitores poderão sentir que a violência do conto é, por vezes, demais. À escritora não lhe interessará – nestas páginas, dizemos – estreitar os significados numa acusação panfletária de crimes reais, que hediondamente continuam por todo o mundo. Estamos no campo da ficção. Da fantasia. Mas essa crueldade está aqui: em gestos, em exposições, em palavras, em proibições e em tarefas. As imagens contornam essa violência com os não-ditos. As obras de arte têm um papel, mas esse papel é terapêutico, não soteriológico. Como escreve Maria Filomena Molder, “com a noite voltam as estrelas, para [Walter Benjamin] um outro nome para as obras de arte, que não salvam a noite... só a iluminam”.
Nota final: agradecimentos à artista, pela oferta do livro.
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