Um dia voltarei à carga sobre a economia da atenção dos circuitos mais usuais dedicados à banda desenhada, e o quão presos estão a uma visão quase pré-moderna de (quase) todas as artes e, por consequência, desta em particular, quase que a impedindo de se metamorfosear nas suas potencialidades mais díspares, ora selvagens ora poéticas. E quando esses circuitos mimam – e de forma defeituosa – os discursos aparentemente legitimadores, de actualização ou de abertura à sua própria liberdade, são os primeiros obstáculos quando não forças castradoras desses mesmos movimentos. Mas ficará para outra ocasião. Não me ilibo, todavia, de contribuir sobremaneira para esse desequilíbrio, quer nos momentos em que consigo obter tempo para me exprimir sobre novas produções quer, e talvez sobretudo, e não o digo sem uma soberba tremenda, quando este silêncio particular prolongado significa silêncio tout court sobre essas obras.
Tive a honra e prazer de ter a ocasião de organizar a exposição do Festival Fólio BD/Flexágono deste ano incluindo o trabalho da jovem artista Rita Mota, cuja “entrada”, digamos assim, se efectuou acima de tudo com este título em particular, reproduzido em risografia a três cores, devolvendo o trabalho dos desenhos a lápis de cor, em óptimo papel off white, com uma tiragem reduzida (até à data, menos de 100 exemplares em duas edições), com 22 páginas de história mais capa, com dois pontos de agrafo. Por outras palavras, um zine com um furo acima de qualidade dos modos mais clássicos. É sobre ele que me desejo concentrar.
Julia Bell escreveu, em Radical Attention, que “os nossos corpos são contingentes, difíceis, inexplicáveis, confusos, mortais. Em vez de atender a estas complexidades, é muito mais fácil fingir que não existem de todo”. Essa seria uma hipótese, e é o que usualmente se faz através das comunicações mais descorporalizadas possíveis de explorar na sredes sociais, fazendo parte disso a transformação desses mesmos corpos em breves superfícies transparentes para a performatividade célere e consumista. Mas a arte da autobiografia artística (sobretudo originada por artistas mulheres, em campos como a performance e a fotografia, mas que na banda desenhada teve como figura tutelar a magnífica Aline Kominsky-Crumb) veio demonstrar não apenas a proeminência dos corpos enquanto materialidade passível de exploração multímoda e plástica e áspera como, mais próximos da nossa disciplina, revelar como as palavras continham em si mesmas uma materialidade visual e as imagens uma narratividade própria. Apenas fronteiras que, identificadas, foram apagadas.
É difícil destrinçar se há linha que separe a possibilidade de leitura de Lesma Vida/Slug Life (o texto está em inglês) enquanto alegoria ou autoderisória metaforização do próprio corpo – na primeira pessoa, a narradora declara-se com um corpo “como uma lesma”, passando a elencar toda uma série de características (“não tem encanto,/ nem é belo,/ nem sequer está em estado/ completo”) - da de uma leitura mais absurdista, à la Kafka, em que existisse uma transformação, ou metamorfose, de facto ocorrendo na “verdade diegética” que apresenta. Algumas imagens mostram mesmo partes de um corpo que participará das duas naturezas (uma “mão”, um corpo feminino coberto de excrescências, uma forma final entre-formas). As imagens, multisensoriais – Mota tira partido de toda uma série de estratégias clássicas da banda desenhada, de vinhetas silenciosas, linhas de irradiação, enquadramentos dramáticos, imagens “enciclopédicas”, composições não-naturais – acabam por parecer traduzir um qualquer afecto nestas formas, que a leitura procura deslindar.
O uso de desenhos, ora mais a linhas despidas ora com mais pormenor e preenchimento de mancha, sempre no que parece ser lápis de cor num traço rápido e leve, em cores muito limitadas (laranja, rosa, lilás, azul, outras pequenas mesclas) reforça essa qualidade afectiva, tanto devedora de “apontamento”, “desenho infantil” e “material preparatório”. De resto, toda esta natureza tantativa está presente no texto, um discurso contínuo que tece alternativas, apresenta dúvidas, coloca questões ao leitor, e, no final, se interrompe de forma aberta, inconclusa, quase em surpresa suspensa.
Disse, acima, “narradora”, por uma quase-antonomásia com a autora, e por surgir um corpo de características femininas, mas a atribuição de género não é de todo um assunto transparente em Lesma Vida. Se, por um lado, a femininização da voz e da matéria corporal poderia ser produtivo numa leitura classicamente feminista – a “body politics” do corpo feminino, da doença, do trauma, da objectificação standard -, por outro, a consideração de uma visão mais dissidente e contemporânea, das “corpas” lavraria outras direcção igualmente estimulante. Suspenderei ambas, por querer ir noutra direcção ainda mais dissipadora da identidade. Afinal de contas, as lesmas são hermafroditas, ou ainda melhor, nas palavras e Karen Barad, demonstração da “performatividade queer da natureza”.
Se podemos entender o início do discurso, ou história, como uma espécie de auto-confissão (da “narradora”, nada nos aponta à autobiografia ou sequer à auto-ficção, ainda que sintamos a sua égide cultural), a decadência apontada, a falha, que pode ter origem cultural e de percepção social, não surge aqui como se de uma “perda” se tratasse. Havendo possibilidade de mudança, esta é antes “uma libertação para outros estados”, como escreve Caitlin Desilvey, “imprevisíveis e abertos” (Curated Decay). Mas não se trata de mudança propriamente dita, de uma transformação, de uma metamorfose, tudo isso processos completos, da passagem de um estado para outro. Nos termos famosos de Deleuze e Guattari, esses processos são reterritorializações, e o que se vai passando em Lesma Vida é antes um “devir-animal”, na qual a subjectividade vai encontrando variações de proximidade com as características daquilo com que encontra o “devir”. Donna Haraway procuraria colocar as coisas de modos diferentes - “making kin” ou “cosntruir afinidades” ou mesmo “elos familiares”, mas apontando-se sempre a um processo, não de transcedência do humano, o que implicaria uma espécie de hierarquia de valores e “ultrapassagem” da condição humana, mas antes um diálogo, uma conexão com a vitalidade intensa da existência animal. Colocando-se em causa os nossos limites discursivos do que entendemos ser identidade, consciência, completude, limite, esta lesma “does not conform”, e abre-se a uma natureza de ser fluida e dinâmica.
A voz narradora parece concluir, antes do “fim” da história, abraçando essa natureza fugidia, de brilho viscoso, “very well then, I contradict myself – it contains multitudes of goop”. O convite à acção do leitor revela-se no trocadilho do título português. “Lês-me a vida?”
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