Contudo, este acumular de negativos atropelam-se entre si, pois são esses os fios que pretendem digladiar-se nas páginas, sem que nunca um deles vença o outro. É um pouco disso tudo, numa construção sempre em desequilíbrio, que empurra à página seguinte, numa permanente busca pelos contornos de uma pessoa, que nunca se chegam a coalescer, pois uma pessoa, sendo-a, é sempre móvel e móbil. Essa é a lavra de Teresa Moure, escritora galega com laços estreitos à fita territorial onde se fala uma língua filha-irmã, na qual “o Zeca” tecia as suas histórias. A autora coze com cuidado o que parecem ser depoimentos de membros da sua família, memórias de companheiros, histórias consabidas, quiçá uma dimensão mais fictícia, mas senão verosímil, “verdadeira” ao espírito dessa vida. E embalamo-nos numa escrita em português que pede emprestado um vocábulo ou uma grafia ao galego, e se lembra de citar francês, espanhol, das línguas africanas com que Zeca privou.
Essas histórias muito rapidamente abrem caminhos a espaços mais alargados: a da história do colonialismo português e as lutas da sua libertação, do espesso e irrespirável Portugal que o 25 de Abril veio arejar, das viagens nas estradas para cantar um pouco por todo o lado, das amizades e do cansaço da vida. Às vezes, vai-se mais longe e fundo ainda, quando uma dança é revelada e atravessa oceanos, ou a história se estende séculos para compreender o tardio da justiça.
E tudo isto é-nos mostrado não em prosa, mas em páginas de uma beleza variada, graças ao trabalho de Maria João Worm. Mais uma vez, é uma fiada de negativos que se nos colocam à frente. Não é banda desenhada, não é ilustração, não é uma subserviência das imagens às palavras, mas são elas mesmas apenas outros membros que dançam num ritmo certo e muito particular com aqueles das palavras.
Numa cena inicial, e em outros breves momentos, as imagens são compostas por fotografias de pequenos teatros de papel, com cenários em recorte e personagens em silhueta, tanto devendo aos teatros do século XVIII como aos kamishibai mais recentes.existirão depois imagens lavradas a papel recortado, rasgado, sobreposto e colado, haverá desenho a linha, aplicação de riscadores, trabalho de grattage, montagens sucessivas, e um incansável trabalho de edição, tratamento, limpeza e filtragem, para termos uma espécie de caleidoscópio visual, estilístico e cromático que tenta repetir e devolver os humores e momentos distintos desta vida inconjunta, como todas.
Dessa maneira, por vezes lemos e vemos algo que se desenrola como um teatro, onde a cena se mantém estática, e os actores movem-se à nossa frente. Noutras, é o audiovisual que parece tomar conta, e os diálogos vibram com uma electricidade que nos fazem concentrar na importância dos discursos. Outras vezes, são pautas, ou nevoeiros, ou paisagens, ou vitrais, e cada passo visual abre-se como um perfume particular de ideias particulares.
A palavra “feminismo” é repetida, muitas vezes, ao longo do livro. E estamos em crer que vai surgindo com as suas várias valências, de polissémica e multivalente que é, capaz de mostrar ângulos diversos de toda uma série de lutas, umas mais lutas que outras. Não se poderia afirmar que o livro é feito a partir de uma meada das “mulheres do Zeca” (uma estrutura muito comum quando se fala de “grandes homens” que tenham passado por relações muitas, como as dos artistas, como se se quisesse diminuir essas existências turbulentas e “escangalhadas” à narrativa chinelada de um pai burguês e em conforto). Mas elas surgem, em fila, da companheira de infância em África às intelectuais influentes, das mulheres com quem casou à que filiou e combateu – em parte, há um pedido de contas contra o seu paternalismo, a maneira como lançou sombra sobre a mulher, se as suas letras iam longe o suficiente... mas são questões que, não sendo sistematizadas e, sobretudo, por não haver um contraditório e contextualização suficientes, fica com um sabor metálico de pergunta da praxe, que tem um valor performativo hoje, mas nada diz de ontem. Mas seja como for, e a canção é citada, bastará recordar-nos do verso “mulher na democracia não é biombo de sala”, em Teresa Torga, que a questão teria resposta, sim?
Pessoas mais informadas que nós poderão dizer se é justo o recorte que se faz de Zeca Afonso. Se não haveria outros momentos tão dignos ou mais importantes. Ou se aqui se revela uma faceta nunca antes pensada assim. Mas estamos em crer que se a liberdade de nos relacionarmos com personagens históricas existe, esta é uma prova dessa mesma liberdade. Não foi a canção do Zeca que se tornou a primeira senha do 25 de Abril. Mas não há dúvida, na epiderme e no sangue que lateja, que as notas e os passos gravados – isto é dito no texto, isto é real, isto é mais verdadeiro que a verdade histórica – de “Grândola” são mais activos e pujantes que a bela voz rasgando o céu de Paulo de Carvalho.
Em certo ângulo, o livro é febril. Estas descrições todas, a sua variedade, assim o articula. Mas é igualmente um livro tranquilo, que coloca cada pergunta lentamente, e a ela poderá retornar mais tarde, e é aos poucos que juntamos as partes, os episódios, e percebemos a vida. Uma vida interior, breve, fragmentária, mas viva.
Nota final: agradecimentos à editora, não só pela oferta do volume, mas por abrir um caminho diferente e digno do diálogo de uma outra banda desenhada ao mundo, e Maria João Worm, pela conversa. Aconselho vivamente esta entrevista a ambas as autoras.
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