Na esteira de uma relação contínua com o artista Ilan Manouach, de colaboração criativa a inquirições académicas, traduzi um artigo da sua autoria que agora tem vida no site Bandasdesenhadas.com, a quem agradeço desde já a, também contínua, abertura a propostas por vezes fora do escopo do seu trabalho.
O artigo é da total responsabilidade do artista mas, devo dizer, trata-se de algo que me interessa particularmente escavar e compreender, com a maior transparência e o esforço dedicado que lhe conseguir dedicar, limitado todavia pelos meus conhecimentos e até capacidades de compreensão técnica. Regra geral, agrada-me em particular o rigor intelectual de abordar o tema no seu alcance holístico, implicado e multifacetado, que vai muito mais além de um basilar, senão mesmo primitivo e até ridículo posicionamento "contra" ou " favor" - por outras palavras, nem cair numa posição "ludita" nem numa de crente no "solucionismo tecnológico" [cf. Evgueni Morozov] -, sem a necessária discussão de quais facetas estaremos a falar: técnicas, culturais, económicas, políticas, até geoestratégicas, e, acima de tudo, éticas. Pois essa é a questão fundamental: combater o chamado "desalinhamento", e, a questão da "caixa negra" (a.k.a. "blackbox"; a opacidade da construção dos algoritmos que presidem a estes programas). Como escreve Diogo Queiroz de Andrade, "Isto implica ter sempre quadros de tomada de decisão que privilegiem respeito pela dignidade humana, obrigar à não-discriminação e à transparência" (Algoritmos. Uma revolução em curso, pg. 53).
Com efeito, não fui, até ao momento, testemunha de qualquer discussão séria, informada e balizada sobre as potencialidades, impactos e vertentes em que a dita "inteligência artificial" (um termo muito erróneo e problemático) se permite entrosar na criação desta disciplina que tanto apreciamos. Discussão na nossa esfera, sejamos precisos, pois ela é algo parca de equilíbrio e argumentação. Vejo apenas respostas passionais e automáticas, sem demais, julgamentos imediatos, uma muito baixa curiosidade intelectual, e, para mais, presos aos exemplos mais superficiais do seu uso, através de plataformas públicas, gratuitas e em regime das tais "blackboxes" dos prompt-generators disponíveis até à data - de que eu próprio, como é sabido, fiz uso, num trabalho pioneiro na Cais.
Neste momento, encontro-me a escrever um artigo, de natureza académica, que toma precisamente o volume Fastwalkers, de Manouach, como ponto de partida, para tentar compreender que natureza de poeticidade é possível de emergir deste tipo de textos assistidos pela "cognição sintética" (um termo mais certeiro do que i.a.; veja-se o excelente volume Chimeras, editado pelo próprio Manouach), e que nascem de, não apenas de acervos específicos e tratados de dados para treino (o chamado"dataset") mas de algoritmos (protocolos) construídos com exactidão. E que, provavelmente, fundarão não apenas novas imagens mas uma nova maneira de ver, tal qual sucedeu com muitos outros instrumentos óptico-científicos ao longo da história humana.
Para ver, é preciso trabalhar. E pensar.
Poderão aceder directamente ao artigo, aqui.
3 comentários:
A tradução e publicação deste artigo em português num ecossistema de divulgação de banda desenhada é um iniciativa salutar, que louvo e espero ver repetida, não só pela tua mão, mas como uma prática generalizada, que conte com vários contribuidores. Kudos!
Quanto ao sumo do artigo (que já queria ter lido na versão em francês, mas não consegui traduzir através das ferramentas do Google), ele peca por não engajar, como diz pretender, com essa discussão das potencialidades da IA (ou da "criação sintética", como faria mais sentido, de facto, chamar-lhes, caso fosse essa a preocupação do artigo).
Não deixa de ser revelador que, num artigo que pretende descrever as potencialidades dessas ferramentas, uma boa parte dele (cerca de metade) seja a essencializar, com recurso várias "palavrões" e livre-associações, os críticos das ferramentas de IA a discursos censórios, "pouco esclarecidos" e persecutórios.
De facto, à semelhança dos Luditas, mas contrariamente ao que referes nesta introdução ao artigo, a maior parte dos críticos da IA não se focam, parece-me a mim, nas ferramentas disponibilizadas, mas na ameaça maior que elas sinalizam; essa vislumbra-se nas utilizações para as quais estas tecnologias estão já a ser aplicadas, com implicações nas práticas laborais e até na propriedade dos próprios corpos de cada trabalhor (é ver a questão central que motivou a greve dos actores em Hollywood, que agora terminou). Tal como os Luditas, as pessoas que criticam mais vocalmente o uso da IA parecem-me ver a bigger picture, no sentido em que criticam não os instrumentos em si, mas a ameaça que eles representam à sua existência; neste caso, a erradicação de uma massa significativa de trabalhadores da indústria que, em situação que é já precária, se vêem atirados para a frente do camião do progresso.
Tenho mais a dizer sobre o artigo do Ilan Manouach, que me deixou um amargo de boca difícil de lavar, mas fá-lo-ei com tempo e em plataforma que me permita, com mais coerência, desmontar os argumentos por ele apresentados, que me parecem, muitas vezes, não só desonestos, como indicadores de um aceleracionsmo liberal aterrador.
To be continued!
https://bedezine.blogspot.com/2023/10/sabado-14-de-outubro-exposicao.html
Olá, André. Não sei quando colocaste este comentário. O Blogger não me está a dar as informações como deve ser. Terás razão, até certo ponto. O artigo do Ilan é feito num contexto particular, que é o belga, em que estas discussões têm tido lugar em várias plataformas. A minha opção de traduzir este artigo prende-se com a colaboração com o Ilan, e não com toda a discussão. Concordo que haverá dimensões menos exploradas, por essas mesmas razões, mas é precisamente isto o que desejava: pôr as pessoas a discutir mais, com informações. Mas temo que, até certo ponto, essa missão seja falha: recebo muitos comentários privados, ou pontapés para o pinhal, e nada disto concentrado. Eu diria que, em parte, o trabalho do Ilan está feito em algumas das suas obras, e nos modos como explica ter construído os seus próprios datasets e regras de controlo. Eu imagino até um futuro mais interessante do uso destas ferramentas -queria mesmo deixar de chamar "IA" e usar outro termo - no ensino e até na criação de banda desenhada, em termos de análise, surveys, estratificação e sistematização de informação consequentemente empregue no ensino. Mas falta-me aprender mais, sobre estas mesmas possibilidades. E, claro, as dimensões da ética e dos abusos tem de estar na linha da frente, mas uma posição "só" Ludita parece-me não apenas errrónea mas até irresponsável, se soubermos que o capitalismo sem freios vai usar isto quer queiramos quer não, quer se controle quer não, e existem modos de pensar em balizas, responsabilização, transparência e leis.
A continuar... num grupo de debate mesmo?
Caro Venerando, parabéns pela exposição! Espero ter tempo de visitar!
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