O título do primeiro capítulo, “Brumário”, é todo um programa. Não apenas se refere à época do Outono, de acordo com o calendário da Revolução Francesa, como necessariamente recorda igualmente o livro de Karl Marx sobre o golpe que veria a emergência do Segundo Império, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, e que no fundo poderá ser lido como uma aplicação da teoria da luta de classes mas igualmente a análise da construção de figuras salvíficas e quase-messiânicas a contrapelo a realidade social, económica e política das acções dessas mesmas figuras. Se no caso de Marx se refere a Luís Bonaparte, em Vale dos Vencidos essa figura é a de António Costa. Quer dizer, parece o António Costa, enquanto Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, mas não é o António Costa. É “Pedro Gomes, Presidente da Câmara de Merídia”. E no centro de Merídia há um bairro muito antigo, popular, que foi sempre ocupado pelos mais pobres e marginalizados, subitamente tornado apetitoso em termos de real estate para, palavra que me causa cortiçonite no céu da boca, “empreendedores”. Esse bairro é o Vale dos Vencidos, e este livro é a crónica da sua gentrificação.
Os restantes capítulos, com as palavras “Ventoso”, “Germinal” e “Termidor”, querem dar continuidade a uma clara temática, não apenas alertando à passagem de tempo, não apenas à corrente revolucionária e aos episódios ideológicos que a marcaram – do radicalismo ao seu “temperamento”) mas a todo um legado literário que se lhe dedicou. Com a força destas intertextualidades se tempera, então, a absoluta inscrição numa visão historicista. Estamos no campo da ficção. Há uma pequena deslocação mínima de pormenores, nomes, elementos, que tornam a matéria lida no livro como alegoria da nossa realidade. Tudo isto torna-o um roman à clef, em que não há espaço, rua, venue de concertos, loja ou restaurante, ou até mesmo revistas, bandas e indivíduos que não fosse reconhecível como tendo uma contraparte real, tal qual acontecia em Os Companheiros da Penumbra, de Nunsky. E esse desvio compreende-se à luz de que o que se pretende criar não será tanto um “j'accuse” dirigido a indivíduos particulares, mas a todo um tecido que continua em vigor na nossa cidade e sociedade: precisamente aquela fantasmática e errónea esperança messiânica no empreendorismo capitalista como única (ou sequer!) solução de problemas estruturais de um local e suas comunidades.
O vale em questão é aquele que se encontra ladeado pelas míticas colinas de uma cidade que se quer reinventar como atraente a interesses internacionais de uma “economia do mesmo”: turismo, empresas multinacionais, cadeias de franquias, poisos para rápidos “hubs” de comunicação, sem uma verdadeira vontade de tocar nas vascas da realidade local. E o facto de ter sido aquele espaço para o qual se escorraçaram e varreram os que perderam historicamente a cidade na sua conquista, torna-os dos “vencidos”: a judiaria e a mouraria, Alfama e Mouraria, mas também, séculos mais tarde, dos simplesmente pobres, dos chungas e mitras da cidade, dos emigrantes do Bangladesh, da China, da Índia, da Nigéria e outras paragens, não necessariamente em harmonia Benetton, por mais que se o deseje pela boa-vontade burguesa. E o período retratado é também claro: a coincidência do magistério de Costa com o da intervenção da Troika em Portugal, circa 2010-2015, com as suas consequências sociais no país, mas igualmente as transformações operadas sobre Lisboa, na viragem do que se tornaria hoje: recreio de unicórnios, franquias e alojamentos locais. Se Vale dos Vencidos fosse um grito de alerta, vem tarde, e agora serve de mais um exemplo de Cassandra.
Pois esta é também uma crónica de uma experiência empírica real, de uma associação de jovens interessados numa cultura abrangente, contemporânea, viva e eléctrica, politizada conscientemente, criada como um oásis num bairro que o acaba por recusar, integrado que ele está numa narrativa da continuidade de poderes instituídos, mesmo que sejam contra si. Falamos da Barbuda, mas essa palavra nunca surge, tais como o nome de António Costa, ou o de Cavaco, ou o das empresas municipais, etc. As pequenas vitórias dos pequenos poderes são sempre mais difíceis de combater que as estruturas maiores, e estas sustentam e garantem o seu poder com o apoio populista dos primeiros, havendo como que uma quase-solidariedade entre ambos para garantir a não-sobrevivência de movimentos verdadeiramente capazes de trazer mudanças sociais e culturais. Entre a Cila dos poderes governativos e a Caríbdis dos “locals”, é a morte anunciada de um esforço que jamais se vinga.
Vale dos Vencidos é tudo isto. Mas evitando a exatidão factual e documental, o livro transforma-se numa presença bem mais fincada na realidade, mais profunda, mais eficiente. Talvez.
Se O colecionador de tijolos, de Pedro Burgos, já tematizava a questão da gentrificação de Lisboa (e outras metrópoles), e possivelmente outros projectos, menores ou maiores, empregam pequenos comentários ou retratos desta situação (permitam uma nota pessoal, de muitas, já que Como Flutuam as Pedras tenta tematizar, via intervenção realista num relato onírico, as distâncias internas a uma mesma cidade na sua cena de “flashback”, repescando algo que já havia explorado literariamente noutro trabalho), Vargas coloca-a no centro absoluto da atenção. É muito menos importante a dramaturgia pessoal das personagens envolvidas que a ideia central. Vale dos Vencidos é, portanto, o equivalente ao roman à thèse. Os seus fundamentos sustentam-se em instrumentos linguísticos e semióticos, e menos genéricos ou retóricos. Daí que se encontrem no livro de Smith Vargas poucos instrumentos costumeiros na construção da banda desenhada regrada esteticamente nos nossos dias – pelo mais prestigioso “pacote” do “romance gráfico”, tais como a manutenção de uma absoluta consistência estilística ou a composição de páginas com efeitos de significação “extra”, a eleição de um arco narrativo aristotélico ou uma clara “redenção” ou sequer “resolução” de uma suposta crise, etc. - e uma maior liberdade circunstancial do que é necessário mostrar. Ou seja, seria fácil criticar o livro por uma certa falta de unidade, ou ter uma coerência titubeante, mas queremos esgrimir o argumento que esse caos ou anarquia é necessário para a própria matéria política do que é discutido.
Aliás, o livro poderia ser lido “ao contrário”. Após a narrativa principal, tem ainda algumas narrativas menores complementares à principal, que lhe surgem como “notas”, de informações desdobradas pela galeria de personagens que o são menos do que tijolos a construir o muro da paisagem do bairro. Mas todas estas peças são anteriores à narrativa principal, tendo sido publicadas nas mais díspares publicações, e que foram ajudando o autor a focar-se nas suas ideias de uma banda desenhada sobre esta matéria, procurando estratégias muito distintas – colaborações com escritores, adaptações de obras literárias ou filosóficas, reportagens gráficas, etc. Estas peças contêm informações “empíricas”, e poderão ajudar a criar uma leitura paralela que reforça a cartografia dos eventos e intervenientes.
Mas ao mesmo tempo reforçam uma outra dimensão de Vale. O facto do livro ser texturado, no sentido de não ter apenas uma contínua linha narrativa a ser desenvolvida, como já indicámos, com personagens na sua evolução e seus desdobramentos psicológicos, alimentando sempre uma intriga central cujo tema se exponenciaria. A atenção antes se estilhaça pelas mais díspares frentes; temos acesso a momentos e eventos em locais dispersos, com personagens distintos que jamais se cruzam (em termos actanciais, já que em termos políticos estão sempre inter-implicados). Mas também a própria matéria narrativa se interrompe com panfletos, notícias televisivas, relatórios de agentes à paisana, vídeos do Youtube, trocas de mensagens, artigos de blogs, já para não falar das “histórias complementares” acabadas de citar.
Alguns dos leitores conhecerão Smith Vargas de outras paragens. Por exemplo, actor, tendo sido quem protagonizou o magnífico filme, realizado colectivamente mas com Pedro Pinho ao leme, A Fábrica de Nada (2017), o qual se apresentava como uma mescla entre o retrato documental, o realismo social e o musical metatextual. Não sabemos que grau de intervenção terá Smith Vargas na écriture desse filme, mas essas matérias complementares e texturizantes são também presentes, de modo claro, neste livro. Além disso, a produção do autor, enquanto criador de banda desenhada, tem estado associada a movimentos activistas particularmente associados às lutas pela habitabilidade e a inclusão social na pólis, em todos os seus sentidos. Veja-se (ou revisite-se neste volume) a sua participação na Buraco # 4, dedicado ao projecto Es.Col.A, ou a sua rubrica “Mapa Borrado” (que tivemos oportunidade de reunir na exposição SemConsenso, de 2015, precisamente dedicada a banda desenhada e ilustração que se engajava directamente com a “coisa política” nas suas dimensões mais vincadas) ou a breve peça de Mundo Crítico (que também, se nos permitem, facilitámos no nosso trabalho de edição para esse título).
Procuremos nós a convergência destes pontos. Se se considerasse toda a narrativa – no seu absoluto conjunto – de uma perspectiva musical, observa-se como uma das texturas trazidas a lume é a da música, mais especificamente das canções ou outras dimensões sonoras. Se algumas nos parecem existentes, confessemos a nossa ignorância se o são de facto ou se inéditas (e fictícias). Mas o livro apresenta um grupo variado de canções, atrevemo-nos a dizer, “completas” na sua performance: a banda de Inácio (de que não ouvimos as letras, apenas temos acesso visual ao concerto e às críticas de um blog), uma performance feminista, uma canção no Youtube, o fado “Meia Laranja”, o rap Gaf em crioulo, mas também a peça dos títeres e a performance durante a visita do Presidente da República ao Bairro. Tudo isto poderia ser visto como a dimensão não apenas musical mas de musical (enquanto subvertendo a lógica de género literário)...
Mas leremos apenas o livro como documento de algo passado em relação a um aspecto específico? Ou podemos lê-lo como arremesso de pensamento mais lateral e abrangente? Sobretudo no início do livro, em que um dos putativos protagonistas (pois há vários), Inácio, vem dos subúrbios para o centro de Lisboa (e pouco importa se vem do Cacém, de Santo António dos Cavaleiros, da Póvoa de Santa Iria, da Ramada, ou outras paragens, pois todas elas acabam amalgamadas, sem identidade, no epíteto de “subúrbio”, como se fossem baptizadas tão-somente pela sua relação com o centro urbano da cidade – o que não iliba as forças camarárias em torno das de Lisboa dos seus próprios comportamentos políticos!), as composições das páginas são propositadamente confusas, com as linhas direitas do cimento, vidro e aço de prédios modernos, e as ruínas de bairros degradados, gruas, viadutos inconclusos. E devido à aglomeração das linhas distintas do artista, ora grossas ora mais finas (frutos de aparos, pincéis, tintas diferentes?), sempre com um grau de nervosismo gráfico, recorda por demais o Gébé, sobretudo L'An 01, a mais politizada de todas as bandas desenhadas do autor francês (e que resultaria numa versão cinematográfica, que terá ecos aqui também). A tactilidade e materialidade das linhas, todavia, é de maior grau em Smith Vargas, evitando assim a um programa de observação distanciado, contemplativo (a raiz etimológica de “teórico”) e mergulhando numa aproximação física, de choque, de percepção imediata e implicada com o corpo.
A dado momento, um dos membros da associação queixa-se de que a campanha já tem “imagens a mais”. Mas num projecto de banda desenhada, nunca há imagens a mais, por mais distintas que elas sejam entre si. E são-no, pois Smith vacila entre desenhos mais expressivos a abordagens mais esquemáticas e até “abonecadas”, desenhos mais céleres e outros mais burilados, e mais uma vez recordando-nos um registo livre e solto de muitos autores politizados franceses da geração Charlie. Mas nunca estão a mais se considerarmos que o seu papel, aqui, não é tanto o de alimentar um programa de representação clássico, ideal e ilusório mas – sobretudo nos momentos claramente não-narrativos, mas “cumulativos” - antes o de providenciar como que símbolos de impacto emocional e psicológico sobre o espectador, a tal proximidade material para que a qualidade das imagens “borradas”, “riscadas”, contribuem.
E há intervalos de representação que se prestam ao onírico, ao devaneio, à visão de Deus, ao esquema, e são tudo elementos concorrentes para erguer a força da variedade do se apresenta. É portanto a vários níveis que esta busca se estrutura por caminhos divergentes, linhas de fuga que jamais se resolvem num nó único que se tornaria o coração dramatúrgico e temático do livro e, assim, reflecte a própria resolução das crises apresentadas: isto é, a sua ausência, pois apenas se verificam derrotas sucessivas. Um dos momentos mais marcantes dessa derrota é quando o mural que mostra um manifesto, associando as Comunas de Paris aos movimentos contemporâneos, é entendido por um guia como tão-somente parte integral da gentrificação da área, o cunho “artístico” que dá um toque exótico à área, para seu consumo imediato. É como tirar selfies à frente de um mural revolucionário, para postar no Instagram (derrota e tema explorados numa imagem “irmã” ao trabalho de Vargas, criada por Marco Mendes há uns anos). Nesse sentido, esta narrativa vem aliar-se aos textos colectivos que criaram a Buraco # 4 em torno do projecto da Es.Col.A, mas também à crónica transfigurada da Biblioteca do Marquês que Amanda Baeza criou com Our Library, e que discutimos no nosso Visualising Small Traumas.
Num ponto primitivo do projecto, esteve para se chamar Móraria. Nas redes sociais dos nossos dias, a Mouraria e zonas circundantes, tem sido alvo de sistemáticos retratos distorcidos e aproveitados quer por forças políticas organizadas de extrema-direita quer instrumentalizadas por cidadãos mal-informados, cegos e racistas. Sobretudo os focos nos imigrantes, nos momentos em que mais juntos estão – ao rezar nas mesquitas, quando se juntam para uma festa, numa refeição. E quanto mais “escuros” e mais afastados do consenso da “Cristandade aberta e democrática” (uma das mais incríveis petas alguma vez pregada por poderes institucionais), pior o retrato fica. Um pequeno antídoto pode encontrar-se num recente livrinho, Martim Moniz. Como o desentalar e passar a admirar, de José Ferreira Fernandes. Mas aqui no Vale há outros que, por mais concentrados que sejam, são bem mais eficientes. Na colaboração com Miguel Caldas apresenta-se uma palavra (e imagem!) de ordem, ao retratar-se um único prédio em que vivem pessoas de origens, crenças e tons de pele variadas (uma espécie de narrativa à la Eisner actualizada com uma visão mais progressista). Nela, a palavra “tolerância” é varrida em nome de algo de maior valor e valorização: “aceitação”. Seja essa o signo de Vale dos Vencidos, mas jamais como sinónimo de “resignação”.
Nota final: agradecimentos à editora, pela “troca” de títulos.
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