Fruto de uma encomenda da parte do festival Madeira Street Arts, cuja primeira edição foi dedicada à prática de “estátuas vivas” (pessoas imobilizadas durante um determinado período e incorporando elementos que as transformam em personagens teatrais), este pequeno livro de 23-25 pranchas de banda desenhada, mais material extra, é um ponto de encontro entre a banda desenhada enquanto estrutura comunicativa, passível de ser empregue em relações pedagógicas, de divulgação, de publicitação até, e palco próprio de transformações poéticas e expressivas. Samuel Jarimba, com o apoio de Magda Pereira na parte conceptual e da lavra das palavras, parte de uma situação real – um “retrato” do festival e dos seus intervenientes – para criar uma espécie de poema gráfico sobre a convergência de mundos narrativos paralelos, os quais espelham os intervenientes.
Em termos narrativos superficiais, o mecanismo é simples: é oferecido um panfleto-bilhete a uma personagem feminina sobre este festival de artes de rua. Estas estão cheias de pessoas “anónimas”, criando a ideia fantasmática da solidão mesmo que rodeados de multidão. Esta mulher leva uma planta de interior, que cuida, e nutre, e observa o seu crescimento. O texto abre-se a pensamentos que têm tanto de observacional como de desvendamento, de um mundo maravilhoso, talvez simbólico, de transformações. E é assim que se torna num passeio mágico, em que a protagonista se cruza com um número de personagens – o “marinheiro”, a “cartonette”, a “o amor é cego”, etc. - que lhe vão revelando o outro lado da noite e do sonho. Apesar de existir uma estrutura explicativa relativamente comum, fica a impressão de estarmos sempre em contacto com a dissolução do mundo ordinário no extraordinário, sem que seja necessário “traduzir” este em sentidos policiados.
Menos do que um arco clássico de uma história, temos uma deambulação que permite ao próprio desenho (e, no campo da banda desenhada, a questões de composição, navegabilidade da prancha, relações entre texto e imagem, e por aí fora) fazer explorações dessas relações no momento, ora explodindo-se em marcas simbólicas (que, como dissemos, não são interpretáveis de modo finalizado) ora permitindo alguma navegação familiar pelas ruas onde o festival terá tido lugar.O livro ainda contém uma espécie de dossier, elencando as personagens, i.e., as “estátuas”, e os seus actores-criadores (Jarimba informa-me que dois dos artistas performers são madeirenses, e os restantes do “contenente”), o que nos permite em retrospectiva compreender como a feitura dessas mesmas personagens informou a narrativa que Jarimba e Pereira teceram em torno delas.
Curioso objecto de como a banda desenhada tem valências aberta as muito propósitos, e se pode tornar ela mesmo palco de encontros expressivos para além dos programas de entretenimento.
Nota final: agradecimentos ao artista, pela oferta do título. Imagens colhidas no site da editora.
Sem comentários:
Enviar um comentário