29 de abril de 2023

Anguesângue. Daniel Lima (Chili Com Carne)

Vou fazer três coisas durante esta apresentação.*

A primeira é irritante, que é falar da minha própria tarefa, mais do que do livro em si. Só aos poucos nos aproximaremos da sombra de Anguesângue. Não subiremos ao seu cume, pois estou preso nas lamas cá em baixo. Para isso, terão de ter paciência, talvez recompense.

A segunda é estranha, que é chamar o Daniel Lima de alpinista, e um alpinista ao avesso. Para isso, terão de calçar botas de montanha.

A terceira é chamar-vos a atenção de que Anguesângue pode ser antes, não um livro, mas um espelho, e um espelho que devolve algo que possivelmente preferíamos não ver devolvido. Para isso, serão temerários.

Isto não é uma parábola, mas desenharemos uma curva parabólica.

O meu papel principal é o de ser um crítico. Esta palavra, infelizmente, ainda carece muitas vezes de uma breve explicação. Temos de resistir a sua redução a uma mera tarefa de atribuição de valor, atribuição essa que seria absoluta, indiscutível e perene.

Como em tantas outras ocasiões, sigo aqui algumas lições do filósofo Noël Carroll. Este autor expõe, em On Criticism, a existência de quatro ordens. Uma primeira ordem é a prática cultural – a criação de obras de arte, por outras palavras. Uma segunda ordem é a sua avaliação, o exercício de juízos de valor sobre a primeira, exercício o qual apenas é legítimo se se seguirem regras objectivamente determinadas. Também esta outra palavra – objectiva – carece de um esclarecimento. Não significa aqui “universal” nem “desprovida de um posicionamento individual”; significa tão-somente capaz de ser apresentado de forma clara e estruturada como um objecto e, por isso, passível de ser desmontadado ponto a ponto, e corrigido, matizado, devolvido. Ou seja, a cada passo concordamos sobre o que estamos a discutir, e vamos avançando. A essa tarefa chama-se “crítica de arte”.

Há depois uma terceira ordem, que é a da teoria, as quais para serem teorias de crítica devem conter os juízos de valor. Carroll considera que o foco interpretativo e avaliador das obras de arte de um ponto de vista ideológico e político constituem “teorias de interpretação”, ao passo que as “teorias da crítica” deveriam centra-se, e passo a citar, “na obra de arte enquanto produção intencional de um artista enquanto criador individual de valor”. Há ainda uma quarta ordem, que serão os comentários em relação a estas ordens.

Para Carroll, o que distingue um discurso propriamente crítico é que vai para além das tarefas da descrição da obra de arte, da sua classificação, contextualização, elucidação, interpretação e análise, para chegar ao juízo de valor. Não estou seguro de ser capaz de chegar a esse ponto, mas tento ter em conta, com efeito, que o papel fundamental de um crítico não é, portanto, meramente oferecer uma classificação, mas antes efectuar uma revelação.

Todavia, na minha tentativa de subir a montanha, talvez eu resvale, e fico ainda no pântano da interpretação. Talvez seja relutante, e não seja capaz de fugir dela. A parábola não fecha a interpretação, mas evitá-la-ia. Escusam de me dizer que nenhuma interpretação é final. O crítico é, afinal de contas, o primeiro a saber que jamais existirá uma interpretação completa, derradeira, definitiva. Mas o crítico não desiste, apesar de saber isso antes do primeiro passo. O seu trabalho não é um exercício de futilidade. É de plena vontade que resvala.

Resvala porque quer estender um gesto que convida os outros a começar a subir. É uma dádiva, é um convite. Um outro texto influente é “The Critic as Host”, de J. Hillis Miller. Nele, Miller advoga que a crítica literária deve actuar como uma forma de hospitalidade. Devemos aproximar-nos dos textos não com uma bagagem cheia de ideias já preparadas ou juízos de valor pré-determinados, que dominariam o texto, mas antes colocar-nos à sua frente de uma maneira receptiva, e assim estarmos abertos a um verdadeiro encontro. Miller, discutindo a teoria da dávida como discutida por Marcel Mauss, o qual, por sua vez, elege o anel como a imagem central do presente – isto é, uma coisa, fechada, objectual, passada de mão em mão entre indivíduos, presente (no sentido de “estar ali”), assinalando a completude doméstica do mundo que representa - chegará a uma metáfora distinta, a da corrente (“chain”), que descreve como, cito, “precisamente não é um anel, mas uma série de anéis, cada anel aberto para receber o próximo, fechado pelo próximo, e o todo potencialmente aberto, sempre aberto para a possibilidade de vir a aliar-se a outra ligação (“link”). O acto da hospitalidade (a crítica) está sempre aberta a novos caminhos de interpretação.


O livro Anguesângue, de Daniel Lima, é, aparentemente, descritível como uma adaptação de dois textos de Franz Kafka, a saber, o conto “Infelicidade”, e o pequeno texto “Das parábolas”, que preside à colecção Parábolas e Fragmentos feita e traduzida por João Barrento (Assírio & Alvim, 2044). A partir desta informação, poderíamos mergulhar num estudo contrastivo, e ver em que medida é que se verificam alterações, como é que a estrutura muda, que tecido conectivo Lima teceu entre os textos de partida, como traduziu para imagens as diegeses, existam elas,, como re-agencia acontecimentos, etc. Não que seja pouco importante esse trabalho, mas temos de ir mais longe. Ou mais acima.

Há um outro livro que me parece exercer algum tipo de influência sobre o trabalho de Daniel Lima, uma espécie de centro gravítico invisível – e notem como é pouco importante saber se, de facto, o Daniel Lima o conhece, se o leu, se faz parte do seu grupo predilecto de escritores, etc. A gravidade funciona à distância. Esse livro é Le Mont Analogue, de René Daumal, no qual um grupo de viajantes tenta chegar a uma ilha invisível, algures no Pacífico Sul, à qual apenas se chega por métodos oblíquos e obscuros, e no qual existe essa montanha, cheia de mistérios, criaturas fantásticas, regras especiais e recompensas para quem a busca.

Daumal, ele próprio alpinista, estabelece uma relação entre a interpretação e o alpinismo. Sugere Daumal que subir uma montanha, tal qual o trabalho de interpretação, envolve necessariamente o estar-se presente no momento, e o mais atento possível às vicissitudes do terreno e às condições sempre cambiantes. Para enfrentar essa subida, há que se ser atencioso à preparação, física e mental do próprio alpinista-interpretador, e dos instrumentos conceptuais e técnicos correctos. Deve estar-se aberto não apenas para com as descobertas surpreendentes a cada etapa mas à compreensão da nossa própria transformação ao longo do percurso. E não é apenas a subida. Ninguém pode subir à montanha para ficar por lá. Tem de descê-la tambèm: essa é a parte da reflexão, da integração das experiências, das lições, das novas perspectivas numa consideração global.

Longa citação: “o que está acima sabe o que está em baixo, o que está em baixo não sabe o que está em cima. Quando subires, toma nota de todas as dificuldades ao longo do caminho. Durante a descida, não as verás mais, mas saberás que estão ali se as observaste com cuidado. Há uma arte em encontrar o teu caminho nas regiões baixas com a memória do que viste quando estavas acima. Quando não consegues ver, pelo menos ainda sabes...”

O próprio facto de que se trata de uma adaptação pode mesmo ser um perigo na nossa aproximação ao livro de Daniel Lima. Corremos o risco de ficarmos enredados nessa primeira relação, e não chegar perto do trabalho do artista. Daniel Lima, ao longo do seu trajecto como autor de banda desenhada, animação, ilustração, serigrafia, e outros objectos gráficos não-identificados, tem lançado mão a textos pré-existentes, literários, dramáticos, cinematográficos para depois providenciar-nos com a sua lavra gráfica, muitas vezes estabelecendo com essa matéria anterior relações oblíquas. Não é uma navegação directa, mas que procura outros modos de abordagem à sombra dessas montanhas. Não há uma “ilustração” ou “tradução” nos seus termos mais usuais, mas antes uma refabricação dos elementos constitutivos, por vezes quase atomizados, para serem reconstituídos como uma nova cartografia, de intensidades. Não quero com isto dizer, de forma alguma, que a relação para com esses textos é disciplicente, de fuga, uma simples escusa de ocupar espaço verbal e narrativo no que o autor propõe, mas, lá está, apenas que o trajecto não é rectilíneo.

A obra de Daniel Lima, se se pudesse descrever como um todo, ganharia com as considerações teóricas em torno das narrativas ditas não-naturais, isto é, que criam um certo grau de desfamiliarização com os elementos mais comuns da narrativa. Lima não cria narrativas fantásticas, em que um qualquer grau do sobrenatural ou do maravilhoso tem lugar, para criar fantasias. Repare-se como toda a lavra de Daniel Lima não pertence ao círculo do impressionismo, mas bem pelo contrário usa instrumentos expressivos decididos e cristalinos: figuras, acções concretas, espaços euclidianos, diálogos, mesmo que numa ou noutra ocasião possam existir interferências gráficas excessivas (alguns padrões de cor, as tramas selvagens, os objectos gráficos não-representativos, etc.), que não pertecem à ordem da decoração, atenção, mas à da concretude textual. Não há pesquisas psicológicas ou dramáticas, nem um arvoramento das personagens a representantes do demasiado humano. São pequenas máquinas actuantes que demonstram a indeterminação humana.

Em Anguesângue, Lima baptiza o protagonista de Eugénio. Do lado etimológico, o nome significa “bem-nascido”, uma outra maneira de apontar à nobreza; do lado deconstrutivo, parece fortalecer uma certa soberba psicológica – Eu, Génio. Todavia, em vez de edificarmos o protagonista enquanto herói, ou num patamar superior ao comum dos mortais, ele existe como cifra de uma curva descendente. Mais, ele está enclausurado num apartamento, este “tipo artificial”, quer apenas fechar a porta, e depois descer as escadas para dar um passeio, mas não o faz e volta para simplesmente se enfiar na cama... Enfim, ilusões de significado rapidamente derrotados pelas acções titubeantes, as dúvidas, a discussão quase infantil com o fantasma. Daumal diz que a arte é “o cumprimento do conhecimento em acção”. Mas o cumprimento pode igualmente ser um incumprimento, à la Bartleby, símbolo maior da relutância. Relutância em procurar subir a montanha, chegar à emissão do juízo de valor, de abraçar as interpretações múltiplas.

Com a estrutura de drama em miniatura (drama aqui num sentido técnico, cénico, espacial, de distribuição de papéis por actores de papel) – incluindo o excurso dos fantasmas músicos – Daniel Lima demonstra uma vez mais que o seu método de interpretação dos textos de partida – por um lado, apetece-me dizer que é uma acção de escavamento, por outro o de alpinismo – é o da procura por uma poeticidade tranquila no que, parecendo banal (conversar, fumar, cortar uma maçã), se desvia da nossa experiência quotidiana. Há aqui, claramente, uma herança de Kafka, do seu absurdismo, em que a estranheza e o ilógico são preservados no interior de uma narrativa aparentemente realista, quase banal, doméstica, particularmente significativa em Anguesângue. Apresenta-se uma situação convencional – pessoas a discutir num apartamento, as escadas do prédio, etc. - mas depois revelam-se os tais desvios absurdos que, no fundo, revelam ao mesmo tempo a artificialidade de todos os nossos comportamentos societais, das nossas relações humanas (com os vivos e os mortos), das nossas decisões, etc. Porém, não é esse afinal o fito da arte? Citando Viktor Shkolovsky, “o de desfamiliarizar os objectos, tornar as formas difíceis, aumentar a dificuldade e a largura da percepção uma vez que o processo de percepção é um fim estético em si mesmo e deve ser prolongado”?

Formar um enigma, então? Não uma resposta, mas uma questão, ou melhor, um problema que nos incite a começar a subida da interpretação.

As parábolas não revelam as suas verdades às figuras participantes. Existindo, essa verdade, é apenas alcançável pelo leitor (desde o distraído ao crítico) – esta é uma dimensão discutida por João Barrento na sua apresentação das parábolas de Kafka. Elas servem para o auto-conhecimento dos leitores. E o tradutor cita o que diz ser “provavelmente a mais curta parábola de Kafka”:

Tu és o problema a resolver. Para onde quer que olhes, nem um estudante à vista”.

* Nota final: este texto foi escrito com o intuito de ser lido em voz alta na apresentação deste livro na livraria-galeria Tinta nos Nervos, dia 29 de Abril; agradecimentos à editora, pela oferta do livro, e ao autor, pela amizade. 

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