O mais das vezes, as criações (cinematográficas, literárias, banda desenhísticas) que versam a ficção científica, a futurologia, as distopias, ou temas quejandos, apostam sempre num dado passo, mais tarde ou mais cedo no interior da estória, a que se poderia dar o nome de “a explicação, finalmente”. Por mais distendida e (aparentemente) descentralizada que a trama pareça ser, há sempre um momento de esclarecimento e hierarquização das informações, dos elementos. Eloar Guazzelli, em O Relógio Insano, dispensa-o. Os leitores são ofertados com fragmentos de informação suficientes para perceberem quais os limites do muro da utopia/distopia pela qual se movem as personagens que vão surgindo, assim como os laços que as unem diferentemente (uma família, uma traição, um retorno...). Há perguntas retrospectivas que não se colocam e não são por isso respondidas, outras respostas surgem apontando a outras perguntas laterais, que por sua vez levarão a outras respostas... É como se nos obrigasse a fazer um pequeno trajecto no perímetro do pensamento que esta história provoca sem que fechássemos a linha, mas adivinhássemos esse contorno geral.
Onde Evereste é centrípeto, O Relógio Insano é centrífugo. A elipse e a incompletude são os outros ingredientes-chave para a emergência do ambiente misterioso da história. Todavia, essa imensa expansão da área não leva a um rompimento irreversível de um centro de coesão, por mais difuso que este seja. Trata-se de facto do retrato de uma distopia e, como soe ser-se nestas ficções, o lema da ironia é um dos estandartes em uso, retraçando algumas das características dessa futura sociedade opressiva àquelas que já hoje partilhamos nas nossas civilizações, contemporâneas, tecnológicas, democrato-liberais, sociedades de entretenimento participativo, de espectáculo permanente, de uma ideologia difusa numa mão-cheia de princípios vagos mas a que se pode dar um nome relativamente simples: “o meu conforto”. Nunca se sabe, porém, o meu pelo preço de quem?
É óbvio que, no seguimento de uma já longa tradição que mergulha as suas raízes douradas em Jonathan Swift, mas que passa por outras obras como O Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley e 1984 de George Orwell (o primeiro superior ao segundo por se ter verificado mais real), todo este retrato de uma cidade onde a aparente ordem (a parte do “relógio”) é mantida pelo silêncio, pequenas ou grandes tiranias e pelo controlo utópico (a parte do “insano”) necessariamente retrata “factos reais” existentes na nossa realidade política (de polis, cidade, que habitamos cada vez mais em conjuntos maiores, graças às tecnologias comunicacionais, que tanto nos “conectam” como nos “alienam”, pasto de discussão). Isto é, apontam-se esses pequenos gestos para o bem de todos que cortam as liberdades individuais dos cidadãos, por menores que elas sejam, pareçam ser, ou por mais ridiculamente egoístas que pareçam essas vontades. Certo, mas por isso mesmo são vontades individuais, e não de grupo, que é o que todo o pensamento utopista pensa poder alguma vez se verificar. O episódio do velho a pagar duas vezes a multa por ter acendido um cigarro, e, face à surpresa do guarda, lhe responde: “Foi o senhor policial que não entendeu, isso é só um adianto... vou fumar outro”, mais do que caricato ou humorístico, dever-nos-á fazer pensar.
Ainda que se possa entender uma linha de acção relativamente central, que une as várias pontas de acção do livro, poderemos, de novo, recorrer à noção de polifonia (que se verifica também nos termos da figuração e tratamento gráfico de prancha para prancha, umas realistas, outras estilizadas, as personagens raramente desvendando os seus rostos completos, outras páginas apresentando-se - como a mostrada - mais como metáfora que representação), a construção de uma obra una pelas difusas e díspares vozes das personagens que a habitam, para classificar o tipo de ficção d’O Relógio Insano.
Por exemplo, uma pergunta flutua no fim do livro. Há um final feliz? Há um retorno real? Ou uma fuga tornada chegada?
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