6 de dezembro de 2008

History and Politics in French-Language Comics and Graphic Novels. Mark McKinney (ed.). (University Press of Mississippi)

A velocidade de estudos e edição académica em torno da banda desenhada está em franca expansão. Isto revela não apenas um aproveitamento qualquer circunstancial, mas uma genuína entrada e desenvolvimento de um pensamento crítico em torno desta arte. Apesar dos detractores encefalofóbicos, a existências destes discursos outros, secundários em relação à obra primária em termos cronológicos mas não de pensamento, apenas reforçarão o seu desenvolvimento enquanto arte e até, eventualmente, a sua libertação de toda uma série de inércias criativas, que a enclausuram num número reduzido de ritmos de respiração, e apontam para dimensões ainda por explorar, forças por experimentar, direcções por seguir.
O título é bastante explícito: não somente é um dos primeiros livros em inglês dedicados exclusivamente à banda desenhada de expressão francesa (recordemos o de Ann Miller), como o primeiro a explorar uma perspectiva tão específica, a da dimensão política e histórica (confundem-se, estas frentes) nessa banda desenhada. Nasceu de uma conferência de nome similar, em 2004, mas os papers aqui reunidos apresentam algumas melhorias face ao que foi apresentado, segundo o editor Mark McKinney, o qual ainda apresenta uma introdução excelente sobre o desenvolvimento da banda desenhada francófona face à perspectiva procurada, as transformações do mercado e o que isso significa para os discursos possíveis na banda desenhada, um pequeno historial do seu estudo académico e penetração nos Estados Unidos e ainda uma apresentação das circunstâncias de produção, distribuição e divulgação desta arte no espaço França-Bélgica-Suíça (e ainda além destes países), muito diferentes das que operam nos E.U.A. (e, acrescente-se, Portugal). Para além de um texto de Baru (autor dos excelentes Le Chemin de l'Amérique, L'Autoroute du soleil e Os Anos Sputnik, de que foram publicados alguns volumes pela Polvo em Portugal) em que relaciona as suas origens de filho de emigrantes italianos e de meios proletários e a tardia mas segura criação de um trabalho particularmente sensível e atento a questões políticas e económicas dessas mesmas vivências [o que espelha a tendência de, complementando a dimensão académica, incluir a voz própria dos autores neste tipo de publicações, também evidente nos números sobre banda desenhada da Mei e da CIRCAVaqui abordados], são apresentados nove estudos, organizados em três secções. Vejamo-las.
A primeira intitula-se “History, Politics, and the Bande Dessinée Tradition”, com três estudos: “Trapped in the Past: Anti-Semitism in Hergé's Flight 714”, por Hugo Frey, “Re-imaging heroes/rewriting history: the pictures and texts in children's newspapers in France, 1939–45”, de Clare Tufts, e “The concept of ‘patrimoine’ in contemporary Franco-Belgian comics production”, de Bart Beaty. O primeiro estuda, não sem alguns excessos e licenças em relação à leitura da autobiografia de Hergé, a presença de sinais de anti-semitismo (sem querer dourar uma pílula particularmente dolorosa, diria antes tratar-se de “comédia caricatural às custas de alguém”, sem negar o delineamento racista que isso pode assumir) no álbum citado. A “close reading”, procurando fortalecer essa leitura, estica a proverbial corda, impedindo de ver neste estudo, a meu ver, um sério compromisso quer com a apreciação desta banda desenhada concreta quer com o contributo para o discurso, necessário, anti-racista, e mais uma redução do livro. Clare Tufts, continuando o estudo das publicações infanto-juvenis francesas em torno da 2ª Grande Guerra (havia publicado um artigo sobre Vica, ou Vincent Krassousky, no IJOCA 6.1.), aborda aqui uma súmula da história dessas mesmas publicações, sobretudo procurando o modo como representavam os acontecimentos contemporâneos ou de um passado imediato relacionado com a guerra... La bête est morte, de Dancette, Zimmermann e Calvo é abordada, mas o centro da atenção são as revistas Jumbo, Coeurs Vaillants, Le Téméraire, [também conhecido como Le petit Nazi illustré!] todas afectas ao colaboracionismo de Vichy. Mas para (des)agradar a gregos e troianos, a emergência do mito da Resistência francesa é também sublinhado, por mãos da publicação Vaillant. Finalmente, e na continuidade de UnPopular Culture, Bart Beatty mostra como as transformações contemporâneas do mercado editorial francês e belga espelham igualmente uma reconstituição e salvaguarda de uma “nova” memória/história, ou melhor, “alternativa”, àquela usualmente tornada pública pelos “amantes da 9ª arte”... Por razões que devem ser claras, este artigo é-me especialmente caro, uma vez que entrosa em preocupações que já argumentei (*&*), ainda que sem os conhecimentos e o denodo de Beatty.
A segunda secção é “Political Reportage and Globalism in Bandes Dessinées”, com dois estudos, de Ann Miller, “Citizenship and city spaces: Bande dessinée as reportage”, e de Fabrice Leroy, “Games without frontiers: the representation of politics and the politics of representation in Schuiten and Peeters’s [sic] La frontière invisible”. O primeiro é uma “close reading” da história “La Présidente”, escrita por J.-C. Menu e desenhada por Blutch, incluída em Noire est la Terre (parte da colecção Histoires graphiques na Autrement). Como já nos habituara em Reading Bande Dessinée, Miller mostra o quão importante é ser-se atento a todos os aspectos que compõem uma banda desenhada, como nenhum elemento é “ao acaso” e que a recompensa de uma leitura inteligente e sensível às questões que tenta responder se revelam no desdobramento de significados fortalecidos. A conclusão, que se relaciona com o título do artigo, é não só positiva como exultante: a noção de “reportagem” ganha substancialmente com a aceitação da banda desenhada como um outro meio de expressão para a concretizar. Sacco estabeleceu uma bitola, mas a dupla Menu-Blutch, através da mescla assumida de ficção e realidade para aceder a uma verdade mais global, mostram outros domínios e arestas possíveis. Miller destaca-as. O estudo de Leroy em torno dos dois volumes da série Les Cités Obscures bebe substancialmente de interpretações estruturalistas dos discursos cartográficos (Michel Foucault, Louis Marin, Jeremy Crampton) para depois ler La frontière invisible e encontrar aí as várias atitudes do controle-da-realidade-através-da-sua-expressão-cartográfica nos papéis das várias personagens, quer dos cartógrafos antagonistas, Cicéri e Djunov, quer do jovem protagonista à procura da sua posição, De Cremer, quer ainda do déspota Radisic e da mulher-mapa Shkodra.
A terceira e última secção académica (segue-se o texto de Baru) intitula-se “Facing Colonialism and Imperialism in Bandes Dessinées” e apresenta os seguintes estudos: “The Algerian War in Road to America (Baru, Thévenet and Ledran)”, de Mark McKinney, “The Congo drawn in Belgium, de “Pascal Lefèvre”, “Distractions from history: redrawing ethnic trajectories in New Caledonia”, de Amanda Macdonald, e “Textual absence, textual color: a journey through memory – Cosey's Saigon-Hanoi” de Cécile Vernier Danehy. Sem querer menosprezar os restantes estudos, Pascal Lefèvre assegura o papel que tem no círculo dos investigadores sérios, comprometidos e consequentes. O seu ensaio é confinado à banda desenhada belga de expressão francesa, deixando de fora a de expressão flamenga (de resto, era aquela o objecto da conferência e do livro), mas trata-se de um alargado retrato dos modos como a propriedade privada do rei, e mais tarde colónia da Bélgica, foi alvo de múltiplas representações na banda desenhada. O estudo consagra-se em particular à obra Le Nègre Blanc, obra de 1951 de Jijé, mostrando como as estratégias narrativas da distribuição de papéis e dos elementos de representação são fruto de uma atitude ambivalente para com essa outra realidade social, da parte de um autor europeu. No entanto, o valor do estudo está na emergência de um quadro de obras que, umas mais racistas e conservadoras, outras mais paternalistas, e outras, como as de Stassen, francamente mais críticas em relação à atitude eurocêntrica, desenham um panorama contra o qual cada uma dessas obras passa a ganhar um valor mais concreto nessa mesma contextualização. Daí que Tintin no Congo se possa revisitar como uma obra problemática, que não pode sair incólume graças à repetida “ingenuidade política” do seu autor. Os restantes estudos são close readings de três obras, a saber, Le Chemin de l'Amérique, de Baru, 1878, terceiro volume da série Le Sentier des Hommes, de Bernard Berger e JAS (ambos autores da Nova Caledónia) e Saigon-Hanoi, de Cosey. Cada um deles é feito num contexto maior ou menor, mas todos eles revelando instrumentos e estratégias de leituras excelentes: McKinney mostra como a obra de Baru, não explorando de modo directo a guerra da Algéria, acaba por fornecer um modo mais profundo de expressar as divisões internas dos envolvidos e de como as marcas de um conflito de tal ordem têm consequências gravosas e duradouras; Macdonald coloca o trabalho de inscrição gráfica específico da banda desenhada, o seu traço, numa posição de maior verve e vigor para a construção (ou devolução) de personalidade sobre as personagens representadas, mormente as que estão no lugar do Outro, em relação à fotografia documental e etnográfica, a qual pode e é muitas vezes sequestrada para empregos delimitados pelos poderes políticos conservadores; Danehy faz uma leitura bem mais formal que as outras do livro de Cosey, com algumas ligações à realidade da experiência dos veteranos da guerra do Vietname, mas é através dela que demonstra a falsa simplicidade do livro do famoso autor suíço, e a magnífica capacidade que ele tem em acumular uma série de camadas (temporais, experienciais, mas igualmente no que diz respeito às especificidades da linguagem da banda desenhada, como as suas famosas “incrustações) numa obra desafectada, lisa, e tecida mais de silêncios do que de ditos moralizantes ou explicativos.
Muitas das matérias exploradas neste livro seriam facilmente transpostas para a realidade da banda desenhada portuguesa, tendo em conta o nosso passado colonial e o papel que muita da banda desenhada teve em educar os seus cidadãos numa luz de orgulho, de conhecimento mítico da sua história, e da missão civilizacional de que nos arrogámos. Existem pequenos estudos e princípios nesse sentido, mas não de um modo mais visível, acentuado e acabado. Espera-se que lá se chegue.
Nota: nenhuma das imagens (com a excepção da capa do livro académico) foi digitalizada por mim, mas colhidas da internet.

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