Sloth é o primeiro livro que Gilbert Hernandez, na sua já longa carreira, publica de imediato nesse formato. Este não é um mero facto da ordem da sociologia, já que tem repercussões sobre o modo como a história é construída, fazendo-a diferenciar-se dos anteriores trabalhos, de maior ou menor sucesso, do autor. A sua obra é por demais conhecida, e o modo como faz cruzar elementos de géneros díspares é uma das suas forças, que inclusivamente faz titubear o mais desprevenido dos leitores que apenas começasse a folhear a série mais famosa, Love and Rockets, a partir do seu primeiro (agora) volume.
A história que aqui se apresenta é, porém, menos errática, em termos de elementos que se vão acrescentando e colando até à emergência de um sentido oculto no seio do absurdo, ou onde a profusão de focos associados a uma miríade de personagens leva até à quase-desagregação de uma linha una da narração, o que acontece noutras obras; a construção de Sloth obedece porém ainda às preocupações mais perenes da obra de Gilbert e, enfim, de todos os irmãos Hernandez: a saber, a vida humana face à imprecisão do futuro e das relações.
Apresentam-se três personagens, adolescentes que vivem num triângulo de relações complexas e de uma intimidade inusitada, que passa obviamente pelo amor e pela sexualidade: Miguel, Romeo e Lita. O primeiro acorda de um coma prolongado, que de certa forma se entende como um escape natural do rame-rame sensaborão da vida de subúrbios que os rodeia. O único escape é a música, a busca por uma fantasia e lenda urbana (o “Goatman”, v. abaixo), os sonhos – recorrentes, os dos limões a cair, que se torna ubíquo no livro, unindo as páginas e as capas num material extratextual que contribui para a trama geral.
Mas, num determinado momento, a convivência da realidade narrativa que se nos apresenta e a força mítica dessa personagem elusiva do “homem-bode” faz com que, no ritmo marcado por quatro vinhetas, haja uma reviravolta imprevisível e surpreendente. Mais, esta alteração radical que se dá a meio do livro é desconcertante. As coisas passam-se com esta personagem, e de repente passamos a vê-las associadas a uma outra, sem grandes explicações. Terão de o ler para se aperceber dessa volta de foco e distribuição de agenciamento das personagens. Mas se por um lado as imediatamente seguintes alterações – dentro da nova “ordem diegética” – levam à complexificação dessas alterações e à sua assunção como consequência da acção do sempre indirectamente presente Goatman, uma espécie de criatura mitológica que tem o poder de alterar a realidade de uma pessoa, por outro apontam para a total falta de necessidade em buscar explicações. Isto é, tal como acontece nos últimos filmes de David Lynch (mas já antes ocorrera noutros, como Alain Resnais), procurar explicações seria não destrinçar a complexidade evidente da trama narrativa, como destruí-la, pois ela não existe com o propósito de ser desvendada, mas sim fruída como tal. O tema, no fundo, das relações humanas (que é o que sempre moveu os Hernandez Bros. nas suas épicas obras) não fica menos claro por essa falta de linearidade da narrativa, ou pelo entrocamento de dois universos compossíveis. Ambos são reais, no livro. É isso o que nos basta. Procurar uma “ordem explicativa” é até um acto de... preguiça.
Nota: agradecimentos ao Gonçalo Freitas, por me emprestar o livro.
13 de setembro de 2006
Sloth. Gilbert Hernandez (Vertigo)
Publicada por Pedro Moura à(s) 7:22 da tarde
Etiquetas: EUA
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