Como todos sabemos, e como deveriam saber mais atentamente os leitores e autores de banda desenhada, todo o acto é político, quer este seja programático ou não, partidário ou não, assumido ou não, consciente ou não. Não há como escapar. É necessário. Até, no que mais nos interessa, as próprias escolhas formais que passam por opção gráfica numa banda desenhada (figuração, composição de página ou páginas, cor, texto, etc.) é uma “forma política” (Jan Baetens).
Não obstante essa transversal ocorrência, é natural que existam obras cujo intuito pode ser invisível ao seu público-alvo mas claríssimo junto aos seus detractores (o género dos “super-heróis” na sua esmagadora maioria), ou ser claríssimo nos seus discursos (os autores associados a, por exemplo, World War III), ou que apontam uma disrupção junto à hegemonia de que partem (Sacco)... Outras vezes são opiniões que emergem de forma mais ou menos visível, mas que pautam a fabricação da obra (David Collier, Justin Brown, Art Spiegelman, Marjane Satrapi). Outras tantas são da própria essência política da voz autoral.
O que ocorre abertamente nas autoras “feministas”. Deste epíteto muito se poderia discutir, como já foi vontade minha, ajuntando um grupo diverso mas não divergente de autoras (e autores também, claro). Nesse grupo, muitos dos discursos são altamente sexualizados, em que a própria sexualidade se torna palco de combate político. Ainda fechando mais o círculo – ainda que sempre, sempre tendo em conta de serem círculos abertos, descentrados, não concêntricos, que se justapõem e cruzam das mais diversas maneiras -, as autoras lésbicas fazem desse estandarte um território pleno de possibilidades: para nomear alguns dos nomes mais famosos, falemos de Alison Bechdel (autora das tiras “familiares alternativas” Dykes to watch out for e mais recentemente de Fun Home), Roberta Gregory (Bitchy Bitch, sobretudo), e Ellen Forney.
Apuradas todas as características de uma “banda desenhada feminista”, isto é, na qual toda a política que é transmitida e jogada nos corpos das mulheres, é patente toda a multiplicidade desses combates nesta colecção de várias histórias – diversas em termos de tamanho, tom, cor, formalismos, objectivos, plataforma original de publicação. É escusado dizer que o corpo da mulher não é mais sexualizado do que o do homem – isto independentemente das inclinações sexuais do leitor. Essa situação é real, bastando olhar para o mundo da publicidade, e escamotear tal questão não ajuda a nada. O corpo da mulher é bem mais passível de objectificação do que o do homem. É precisamente essa luta o que esta banda desenhada a que dou o nome de “feminista” vem travar. Os grandes nomes, e mais uma vez revelando-se essa diversidade, são os de Aline Kominsky, de Julie Doucet, de Phoebe Gloeckner, de Marjane Satrapi (no Broderies, sobretudo), e entre nós, grandes nomes também, o de Isabel Carvalho e da saudosa Ana Cortesão, por exemplo. Forney estará obviamente nesse território, mas de um modo muito diverso e, se mo é permitido dizer assim, até de uma forma mais “democrática”. Vejamos...
Uma das secções deste livro é um guia de “como fazer”, versando drogas, a dobragem a bandeira nacional, uma carreira como prostituta, receitas, masturbação, e comunicação entre os pais e os filhos, quase todos desenhados por Forney depois de uma colaboração com um especialista na matéria dada. As histórias que se seguem também pairam sobre fantasias sexuais, relatos de memória, pequenas aventuras domésticas inesperadas, obsessões, e descobertas da mais profunda expressão sexual – como nao caso das experiências de Dan Savage (de que aqui se apresenta o “grito do Ipiranga” – necessariamente fantasista – da consciencialização político-social dos papéis sexuais, despoletada pela sua primeira experiência de transvestismo).
Digo “democrática” porque nenhuma das histórias de Forney, seja estas colaborações directas ou indirectas, trabalhos individuais ou baseados em acontecimentos exteriores, não estão propriamente a insinuar-se nem a clamar uma “lição”; simplesmente constatam factos que são existentes no planeta, na esfera do humano, e que apenas nos compete aceitá-los como verdadeiros, reais, enfim, humanos e, assim, aceitar ao mesmo tempo essa mesma diversidade – mesmo que não tenhamos essa mesma vivência. Não há aqui espaço para proselitismo de qualquer espécie. Mais, o proselitismo é impedido pela presença do humor: até mesmo uma análise crítica do que o cabelo feminino representa descamba numa anedota bem-disposta...
Aproveitando uma informal conversa com Isabel Carvalho, roubo-lhe a ideia de que, de facto, o traço de Forney revela um grande esforço de criação: não estamos perante propriamente uma desenhista descontraída (como Roberta Gregory, como Isabel Carvalho) de cujas mãos flui a matéria do seu trabalho. A oscilação de estilos, entre um bem-contornado (e bem-comportado) realismo e pequenos desvios pela caricaturização (quase o que em mangá se chama de chiba), não é nem áspero nem delicado, servindo com um equilíbrio sem surpresas o programa narrativo, informativo e, lá está, político, destas breves bandas desenhadas. Não serve a arte dela para uma contemplação imaginativa, mas somente como veículo e ilustração aos seus conteúdos específicos. Mas no fim de contas, I Love Led Zeppelin é precisamente um programa de educação da diversidade e das múltiplas opções existentes, apresentada de forma clara e, mais do que eficaz, com fortes reverberações de humor.
21 de setembro de 2006
I Love Led-Zeppelin. Ellen Forney (Fantagraphics)
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:35 da tarde
Etiquetas: EUA
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