Catarina Leitão é uma artista portuguesa cuja obra se estrutura em torno de instalações, objectos esculturais ou site-specific, mas também em desenhos, usualmente de grandes dimensões, posters colocados em locais com os quais estabelecem uma relação de necessidade e de informação mútua (veja-se o seu site). E todos esses objectos, reais ou desenhados ("desenhados" é também uma forma real, claro, mas está um passo dimensional abaixo dos objectos propriamente ditos), condensam-se em torno de certos temas recorrentes: ecologia, catástrofe, sobrevivência, existência pós-humana, prótese, estruturas maquínicas pós-funcionais, etc. Catarina Leitão é ainda autora de uma série de 5 livros intitulados Uplift, de uma edição ultra-limitada, que explora os mecanismos do pop-up para recriar alguns dos espaços e objectos da sua obra restante. A engenharia do papel que emprega vai desde soluções relativamente simples a outras mais complexas, para fazer emergir, literalmente, a terceira dimensão de desenhos a duas dimensões. Drift é o segundo livro num formato mais clássico, depois do Wheatherproof de 2007, mas ao passo que esse era um livro em acordeão e feito através da técnica do letterpress, este é um objecto mais imediatamente relacionado com o formato clássico do fanzine: fotocopiado, agrafado, de manuseamento linear. Num encontro informal produzido pela Oficina do Cego, Associação de Artes Gráficas, quando da sua residência no programa Ghost da Re.Al, a artista discutiu alguns dos seus projectos e falou especificamente de Drift. A razão de ser desta publicação é, por um lado, banal, mas por outro, de uma grande importância política: a possibilidade de criar um objecto de maior portabilidade, que proporciona um acesso mais simples e imediato a um público mais vasto, mas também como forma de explorar capacidades de exploração e divulgação mais imediatas a uma mesma matéria sígnica, conceptual e filosófica que a autora conduz regularmente. Deverá ser óbvio que expor um mesmo "tema" ou "matéria" sob a forma de uma instalação, de um cartaz site-specific, desenhos de grandes dimensões numa galeria de arte contemporânea, ou de um fanzine, implica de imediato certas opções e transformações dessa mesma matéria. Sem querer cair no perigo de falar de especificidades mediáticas (de "meio", "medium") intransponíveis nessas transformações e opções, o resultado não será o mesmo, a relação que estabelece com os seus fruidores não será a mesma. Esta é uma questão que surge com regularidade sempre que se discute o conceito mais profundo de ilustração. Esta palavra diz respeito sobretudo àquelas relações que certas imagens estabelecem com um texto, e mesmo quando estamos perante criações que não se coordenam com essa visão mais habitual, os questionamentos desse território podem informá-lo de uma maneira decisiva. A maior ou fundamental diferença entre a linguagem e as imagens reside no facto de que as segundas não conseguirem articular proposições específicas como a primeira, nem serem capazes de indicar relações de causalidade. Uma teórica como Kibédi Varga escreve como "a imagem não é uma segunda maneira de contar o conto, mas uma maneira de evocá-lo". Varga está a referir-se aqui a situações de transmedialidade que implica a existência prévia de uma narrativa, cujos elementos encontrarão alguma forma de se transformarem na matéria visual escolhida pelo autor ou autora das imagens, mas nós estamos neste momento a enveredar por um território em que a criação das imagens tem a sua origem nelas mesmas, e não numa transposição a partir de uma narrativa prévia, seja ela textual seja conceptual. Há muita matéria que a visualidade das ilustrações acrescenta em relação aos textos originários - emotividade, expressões faciais e corporais, pormenores do espaço físico, cultural e social, opções figurativas que validam posicionamentos de representação e de humor - para além de conseguirem, ainda assim, pelo conhecimento que os leitores/espectadores têm da fabula original, "importar relações lógicas e motivação psicológica", nas palavras de Marie-Laure Ryan. Mas a estratégia narrativa proporcionada pelas imagens abre um campo de decisão de maior responsabilidade aos próprios leitores/espectadores. O próprio título desta publicação, Drift, assumindo a forma gramatical de um nome a partir do verbo drifting ("derivar"), substantiviza, objectifica, torna inerte a ideia de movimento: aquilo que é contínuo e em fluxo, aquilo que estaria “à deriva”, encontra aqui uma representação por momentos estáticos, “objectos”, “paragens”. Cada cena surge na sua presença individual e cabe ao leitor a sua articulação numa conjunção de acções, elos de continuidade e lógica. Em termos figurativos e estilísticos, Leitão utiliza técnicas simples, como o desenho a contorno negro (tinta-da-China), tramas e texturas, algumas áreas a manchas sólidas a negro (cuja reprodução, apesar de fotocopiada, é excelente). Aliás, numa primeira abordagem superficial, a primeira impressão criada é colocar Drift lado a lado com as criações (livros) de autores tais como Andrzej Klimowski, Chris Reynolds, ou mesmo Martin Vaughn-James, neste último caso por nos recordar um mesmo tipo de utilização de objectos "torturados", espaços destruídos e catastróficos, agentes humanos cujas acções não são de modo algum claras, e relações entre as imagens que devem mais à associações onírica do que à lógica narrativa, ou pelo menos, àquela lógica narrativa passível de ser re-verbalizada através de estratégias textuais como o resumo, a sinopse ou o comentário. Lógica que haja, ela só é acessível através da interpretação crítica (um dos títulos de outro dos trabalhos de Leitão, Thicket, faz-nos lembrar Thickets, de Warren Craghead III, cujas afinidades serão mais dúbias, mas ainda assim a construção fragmentária - mais sentida ao nível da figuração no artista norte-americano -, a procura de temas nos “bastidores” urbanos, um questionamento da experiência humana nos interstícios dos espaços sociais construídos e depois abandonados pelos homens, são alguns dos pontos que merecem ser indicados para pensar na aproximação).
Se bem que não estejamos perante uma narrativa clara, e muito menos no universo da banda desenhada propriamente dito, a autora opta por certas estratégias de paginação e composição que levam a crer nalgum desejo nesse sentido, por mais fantasmático que seja. A maior parte das páginas são ocupadas por apenas uma imagem (uma “vinheta”?), mas mesmo estas flutuam no espaço da página, nunca estando na mesma posição, revelando vários graus de branco “por baixo”, e tirando muito partido dos contornos grossos das molduras, e da gestão entre manchas pretas e brancas no seu interior. Três páginas têm duas vinhetas emolduradas e três outras têm uma vinheta emoldurada e outra imagem flutuando (“drifting”?) no resto da página (e, num desses casos, a imagem é dupla, ou melhor, vemos dois objectos isolados e sem relação espacial aparente), sempre em graus diferentes de posicionamento e dimensão de cada imagem. Esta brevíssima e incompleta descrição serve só para marcar a procura de variação pela autora das suas estratégias composicionais, afastando Drift de um mero repositório de desenhos heteróclitos.
Como dissemos, um dos autores que mais recordamos na leitura de Drift é Martin Vaughn-James, e o seu seminal The Cage, mas onde a presença humana nesse livro era apenas fantasmizada através de outras estratégias cf. Isabelinho), aqui temos a instância de figuras humanas, que ora aparecem fragmentadas e fora de campo (braços e pernas estendendo-se no meio das estruturas) ou sob a forma de uma personagem cujo corpo está totalmente protegido por uma armadura ou fato, entre o de anti-radiação e de mergulho, de piloto e de astronauta. O que rodeia essa personagem e compõem a esmagadora maioria dos objectos representados oscila entre o natural despojado - parece-nos ver troncos de árvores mas sem qualquer folhagem, sem qualquer traço de vida activa -, o natural automatizado - um bando de pássaros atravessa uma folha, mas pormenores fazem-nos crer que são simulacros maquínicos de pássaros - , e o urbano e industrial abandonado e destruído - carcaças de aviões, helicópteros, carros, um bote de borracha, bidões vários com detritos. As combinações possíveis entre esses dois domínios - o da natureza e do artificial - está naquela situação a que já apontámos, a da catástrofe. Os objectos encontram-se destruídos, as árvores encontram-se despidas, e há mesmo casos em que parecem estender-se dendrites por todos os lados, dendrites cuja figuração oscila entre essas condições do natural e artificial, talvez mesmo um signo de mescla mais profunda, procurando dar conta de uma organicidade da matéria inerte e morta, que se espalha, espalhando a morte que também representam. Ou seja, é o único sinal de algo que se estende, move, deriva, enfim, mas o seu sinal é contrário ao de coisa viva.
É nesse cenário que surge a tal personagem várias vezes, e algumas pistas, sobretudo actanciais, nos levam a crer estarmos perante uma possível narrativa, ou pelo menos um arco de desenvolvimento narrativo. A primeira vez que a vemos, está no interior de uma espécie de respiradouro, e às costas leva um recipiente de onde partem as tais dendrites arborescentes. De resto, está num espaço isolado, ainda que uma sombra negra se estenda em seu torno. A segunda imagem com presença humana, no meio de outras imagens sempre mostrando destroços, é a tal em que braços e pernas parecem perdidos num cacho de destroços, talvez a cair (o número de pernas faz pensar que se trata de mais de uma pessoa). Na seguinte, sem dúvida a mesma personagem (ou será antes outro membro de uma comunidade com um mesmo tipo de uniforme?) encontra-se a investigar um outro objecto. Depois, apenas um par de braços aparece a abraçar ainda um outro objecto. Alguma coisa - talvez a procissão incessante de objectos diferentes, alguns deles com peças soltas, outros isolados - levam-nos a pensar que essa personagem é uma espécie de respigador, sobrevivente de um ambiente pós-apocalíptico. E a verdade é que a última imagem em que surge essa personagem, ela se encontra carregada com inúmeros objectos (e com os bolsos cheios), alguns dos quais fomos descobrindo várias vezes ao longo da leitura - uma coisa que se parece com um regador mas com as tais dendrites, um reservatório de rega ou desparatização ligado a esse regador… Adicionalmente, essa é a última imagem do livro, e a personagem está de costas para nós, como se se afastasse, agora que a “mssão” está cumprida. Podemos até, com algum humor, comparar essa imagem com aquelas clássicas dos cowboys partindo em direcção ao horizonte… Mas o mais importante é a maneira precisa com que essa imagem cria uma noção de fechamento, em si mesma uma função que ajuda ao fortalecimento da narritivização possível de Drift, incorporando-o, então, a este nosso território, mas expandindo este território com essa sua inclusão também.
É partir destas considerações e estruturação que começaria, finalmente, a interpretação diegética do livro.
Nota: exemplar pertencente à colecção de edições da Oficina do Cego, por gentil oferta da artista.
26 de maio de 2011
Drift. Catarina Leitão (auto-edição)
Publicada por Pedro Moura à(s) 5:57 da tarde
Etiquetas: Experimental, Portugal, Territórios contíguos, Zines
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2 comentários:
belissimo artigo Pedro.
:-*
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