A primeira impressão que se nos impinge com a leitura deste livro enormíssimo, quer pela rapidez com que somos obrigados a virar as páginas para avançarmos quer pela demora com que a trama narrativa parece querer consolidar-se (se é que alguma vez o faz definitivamente), é que parece estarmos a ler um livro da mesma natureza do que Blame ou NOiSE de Tsutomu Nihei, ou algum outro livro desse género de mangá contemporâneo mainstream. Por um lado, as características de termos muitas páginas com pouco texto (matéria verbal), uma acção linear que se vem associar a toda a tradição de viagens e aventuras teleológicas da banda desenhada, que nos leva a um folhear rápido e certeiro, coloca este livro de um dos paladinos da cena de Rhode Island, do grupo experimental Fort Thunder, nos campos das novas linguagens cruzadas da banda desenhada, a saber, a de criações ocidentais influenciadas de uma forma ou outra pela mangá. Por outro lado, o estranho ritmo de ter demasiadas informações a se empilharem à nossa frente sem que se coalesçam numa narrativa inteligível, suspendendo uma decisão de sentido, lançando várias metástases que jamais serão resolvidas, e misturando elementos provenientes de vários géneros reconhecíveis mas tão amalgamados que se tornam algo totalmente diferente colocam-no numa veia próxima da de Nihei, se bem que enquanto esse autor trabalhe ainda no interior do mainstream, pela efectiva resolução moral e narrativa das suas histórias, Chippendale não facilita esse aspecto, e está apenas interessado numa expressão quase egoísta, intransigente.
Esta obra é menos frenética do que Ninja ou Maggots, ou outros trabalhos anteriores – as páginas têm mais espaço em branco, quase todo o livro é composto por uma única vinheta por página, com algumas duplas.
A cena de abertura coloca-nos numa direcção, como se estivéssemos perante uma construção minimalista, simples, cristalina. Uma abordagem geométrica (os leitores de The Cage poderão recordar-se de algumas das suas construções) constrói um brevíssimo território que rapidamente nos é roubado. À medida que avançamos na leitura, apercebemo-nos de que o frenesim afinal está desviado noutros modos.
O livro está dividido em vários episódios, que podem ou não corresponder aos diferentes terrenos que são atravessados pelos dois protagonistas: If, uma criatura amaneirada, falante e simpática (mas que revela, mais à frente, um super-poder assombroso), e Oof, o seu companheiro silencioso, mas não menos engenhoso. Ao princípio, são expulsos do que parece ser uma cidade flutuante nas nuvens, mescla de laboratório tecnológico de ponta e utopia controlada por um ditador com laivos de benfeitor. Depois, vêem-se obrigados a passar de terra em terra, cada qual habitada por seres inóspitos, protectores viscerais, criaturas selvagens. Num ou outro momento, formam-se ideias de que nos aproximamos de uma explicação mais clara, mas ela dissipa-se novamente com um novo passo. Atravessam-se no caminho das duas personagens antagonistas ou aliados variadíssimos: ninjas, selvagens pré-históricos, monstros, reis e escravos, betos zombies, criaturas fantásticas. Estamos perante um mundo de fantasia que tanto deve à Marvel (recordemo-nos que no Coober Skeber Marvel Benefit, Chippendale participa), como aos jogos de plataforma, como à high fantasy mais clássica (quando caem no “mundo”, uma dupla página mostra uma espécie de representação alargada, ou mapa, técnica constante numa família da literatura de fantasia infanto-juvenil que vai desde Milne-Shepard a Tolkien), como ainda - e aí temos um enorme legado assumido - a Gary Panter, mas tratado, tudo isto, como um todo e com uma grande parte de alucinação e criatividade que pouco se importa com fronteiras e referências internas à própria história da banda desenhada. Aí, Chippendale respeita o mesmo ensejo que parece estar presente em Teratoid Heights de Mat Brinkman ou Powr Mastrs de C.F.
Como se disse atrás, o frenesim de Chippendale não deixa de estar presente, sobretudo na maneira como ele desenha as suas personagens, uma herança da “ratty line” do já citado Panter, como constrói as suas personagens a partir de elementos díspares - quase como se se tratasse de um aproveitamento de partes soltas de outras personagens anteriores -, como salta de uma ideia para a outra (às vezes parece estarmos a ler Grant Morrison), e como os seus diálogos parecem ser escritos para uma série de desenhos animados frenéticos com vozes estridentes (se se recordarem das animações feitas por membros do grupo alargado de Fort Thunder, aperceber-se-ão de que não é uma comparação aleatória), divertidos, infantilizados, mas também passíveis de serem lidos de uma maneira que revelam significados mais ancorados na nossa realidade: a pesquisa genética, o trabalho forçado…
Não obstante a concatenação de personagens, espaços, episódios, matérias e temas que se vão cruzando, a constante das duas personagens titulares também integra este livro em géneros mais normalizados da banda desenhada, inclusive os da aventura, do humor, mesmo aquelas dirigidas a leitores mais jovens. Há toda uma leveza neste livro inegável. Isso não significa que essa mesma leveza não esconda por vezes sombras estranhas… Há um momento que mostra Oof a espreitar para o interior de uma espécie de caixa, na forma de um boneco de peluche, que descobrem num dos locais por que passam…
O leitor acompanha esse olhar, assumindo-o ou mesclando-o com o da personagem, e vislumbramos rapidamente algo que parece ser aterrorizador. Nenhuma explicação se lhe segue, nem o episódio é revisitado. Estes desarranjos súbitos dos sinais emotivos de If’n Oof são constantes, e talvez seja essa uma das possíveis marcas de distinção entre Chippendale e C.F. e Brinkman, os quais exploram de outra maneira o mesmo tipo de referências, com efeitos diversos, talvez mais mecânicos e formais. Será eventualmente estranho aliar a ideia de flutuações emotivas com a forma de estruturar a história ou de construir personagens deste autor, mas em grande parte aquilo que essas mesmas personagens comunicam entre si são canal suficiente, e nítido, para que os leitores a elas acedam.
5 de maio de 2011
If'n oof. Brian Chippendale (PictureBox)
Publicada por Pedro Moura à(s) 5:36 da tarde
Etiquetas: EUA, Experimental
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