17 de março de 2008

Tamara Drewe. Posy Simonds (Jonathan Cape)

Este livro, de banda desenhada, para além das naturais cenas, isto é, os eventos representados nas mais normalizadas estratégias da banda desenhada (imagem), apresenta ainda trechos de texto (recitativos) assaz longos, como se tivessem sido retirados de um diário, de um longo pensamento como acontece nos textos literários, ou de um momento de interlocução directa com as personagens do livro, inseridos nas pranchas. Essa é uma das características do trabalho de Simmonds já presente no livro anterior, Gemma Bovery, característica que coloca estes livros num campo entre o da banda desenhada e o da literatura, quer a ilustrada quer a tout court. Não acontece o mesmo que em Hugo Cabret de Selznik, onde a estranheza é mais complexa; digamos que há uma maior inércia em incluir Tamara Drewe na banda desenhada ainda que existam estas estratégias algo estranhas – mas não inéditas, pois basta pensar na história desta linguagem para nos apercebemos que nem sempre a banda desenhada seguiu a mesma maneira de transmitir a parte textual, com legendas minimizadas e balões, mas empregando grandes blocos de texto “externo” à imagem. (Mais)

Se Gemma Bovery estabelecia laços estreitos e a vários níveis com Madame Bovary, de Flaubert, Tamara Drewe acaba por se revelar como tendo afinidade com outros universos ficcionais, mas Far from the Madding Crowd, de Thomas Hardy, é, poder-se-á dizer, a fonte explícita deste livro: é a primeira informação textual que se lê no interior do texto, tratando-se do título do anúncio do retiro de escritores, no campo, em torno do qual toda a acção se desenha; a trama desse romance é em tudo idêntica, ainda que nos seus mais gerais contornos, com a desta banda desenhada – a chegada de uma mulher jovem, cosmopolita e sedutora, estranha àquela vila, seduzindo o jovem rural que é menos polido nos negócios do amor; seduzindo outros homens e instigando contínuas atribulações entre rivais; a “pintura”, como se costuma dizer, da vida rural mas revelando o seu aspecto mais prosaico e até violento em vez de o empregar enquanto paisagem bucólica; a típica tensão entre as pulsões do amor e da morte... É como se Posy Simmonds escolhesse – e não o escondesse, mais, o revelasse mesmo, tornando-se parte do jogo intertextual explícito – uma obra de literatura conhecida, a reduzisse à sua estrutura actancial (à la Greimas) e depois a preenchesse com novos elementos, mais próximos da experiência contemporânea, quer em termos civilizacionais quer em termos sociais, para nos ofertar uma nova versão dessa antiga história. Desse modo, revela aquela ideia feita de que um clássico é sempre legível de novo de um novo modo, e de que existem estruturas ou ideias que podem ser repetidas porque farão parte intrínseca da experiência humana. Por outro lado, as semelhanças entre Bovery e Drewe são em termos de estilo, o que não poderá constituir matéria nem de surpresa nem de desagrado.

Apesar do título apontar para uma predominância de atenção para com a personagem da jovem Tamara, não podemos falar propriamente de uma personagem principal, eixo a partir do qual se concerte toda a restante estrutura diegética, ou que mereça uma maior preponderância em termos de atenção do narrador, mais momentos, um maior número de acções... É claro que Tamara é o assunto das conversas e das alterações relacionais em curso durante o livro, mas é como um tema, não a estrutura, é ela o objecto focalizado, não a personagem focalizadora. Com toda a propriedade da teoria literária se poderá empregar neste caso o termo de polifonia, já que essa atenção focalizadora voga de personagem para personagem, criando um prisma complexo, mas completo e organizado. Não obstante, podemos afirmar ainda assim que aquela personagem que acaba por ganhar uma importância acrescida, é o escritor Glen Larson. Nesta estratégia, também este livro recorda Gemma Bovery, em que é a protagonista a obsessão central das várias personagens, que vão contribuindo para o seu retrato, mas acabamos por estar mais vezes lado a lado de uma personagem quase secundária, uma testemunha, que é Joubert.

A distribuição da presença das personagens, e o índice de tipos de participação das mesmas – ou nas partes de vinhetas representando acções, ou nas partes de texto confessional, ou em outros materiais (cartas, artigos ou colunas de jornal, etc.), leva-nos a entender uma escolha significativa no delineamento de Tamara; é o facto de ela ser uma personagem de ficção. Não estamos aqui, como é óbvio, a referirmo-nos à personagem enquanto factor da relação ontológica com o mundo, mas sobre a sua inscrição no interior da própria ficção em que ela é instituída. Ao passo que temos acesso às memórias, pensamentos e atitudes, digamos, “privadas” de muitas, se não de todas as relevantes personagens, já de Tamara se passa algo oposto: o canal que se torna privilegiado para revelar o seu pensamento – diferente da sua interactividade com outras personagens através de acções e diálogos - é a coluna que ela escreve para um jornal. Isto é, é apenas através dessa escrita, e um tipo de escrita muito particular que remete a um esquivo vínculo entre o “real” e a “invenção”, que temos acesso directo à mente e pessoa de Tamara, o que nos permite um grau de dubiedade muito superior ao das restantes personagens. De resto, a imagem vai sendo completada pelas lembranças e perspectivas das outras personagens. Jamais é mostrada qualquer analepse que parta da própria Tamara, por exemplo, apesar delas serem frequentes no resto do livro(com uma única excepção, que não nos parece significativa).

Desde True Love, de 1981, que Posy Simmonds explora em formato de livro as ilusões criadas nas mentes das mulheres em torno dessa outra ficção a que se dá o nome de amor. Simmonds não deixa de construir um discurso feminista, ainda que ao invés de um discurso desconstrutivo e de crítica directa como acontece com outras, excelentes, autoras, como Doucet, Satrapi, Bechdel, Aline Kominsky, prefira o de uma mais subtil estratégia, de um humor tranquilo. Em todos estes livros surgem mulheres que foram criadas no interior de sociedades que lhes foram incutindo uma imagem do que uma mulher “deve ser”; percepções criadas pelas revistas, pela publicidade, pelos filmes, pela moda, enfim, por tudo. Esses canais de formatação estão sempre presentes nos livros de Simmonds, mas assumem uma particular relevância em TD, afectando não apenas a própria Tamara (cuja primeira informação importante é o facto de ter feito uma operação plástica ao nariz), como as mulheres mais velhas (Beth Hardiman aguenta o insuportável Nicholas devido à “segurança”, à ilusão do “casamento aberto”, a uma certa entrega ao “conforto” que é ela mesma quem funda e sustenta) e as mais jovens (Jody criando histórias de amor e profundo relacionamento e entendimento com estrelas de rock que apenas conhece das revistas de mexericos ou de atravessar a estrada do local onde vive). Um contraste entre esses dois feminismos que aqui identifico (mas de modo algum pensem que estou a esgotá-los, como se fossem as suas únicas duas formas) é a representação das expectativas do que um corpo belo de uma mulher deve ser. Ao passo que as autoras citadas atrás, normalmente empregando a autobiografia, mostram o ridículo e até doloroso ritual que é a depilação, a obsessão com o peso, a maquilhagem, a roupa, os truques de sedução, os serviços sexuais “para os prender”, e outros factores de redução da mulher a fonte de prazer do homem, Simmonds larga as suas personagens nesses mesmos rituais, mas sem que exista uma ponta de crítica ou desconstrução nem da parte das próprias personagens, que até elogiam esses mesmos rituais, justificam-nos e elaboram-nos de modos cada vez mais complexos, nem da parte do narrador, que poderia empregar estratégias visuais ou textuais que para isso apontassem. Todavia, é precisamente pela continuidade dos eventos e pelos resultados dessas acções que nos vamos apercebendo de quais desses rituais fazem parte por inércia à sociabilização contemporânea, e quais aqueles que aumentam o grau de alienação do mundo real, sendo sobretudo estes então que surgem como não apenas vazios como contra-producentes e, neste caso particular, até mesmo trágicos. É como se Simmonds mostrasse o problema dessas ilusões, o deixasse confrontar-se com o mundo real (da ficção), e nós testemunhássemos a sua ruína.

O prisma a que me referi atrás tem, como se compreenderá, a sua dimensão do como, fazendo-nos retornar à composição das páginas ou pranchas. Gemma Bovery era a preto e branco, True Love a duas cores, com um fortíssimo rosa, TD a quatro cores. Todavia, Simmonds emprega-as esparsamente, preferindo uma contínua paleta reduzida, acompanhando as estações com “temas cromáticos”, se assim se pode dizer, e muitas vezes optando por reduzir as cores drasticamente a azuis e cinzentos, para criar um ambiente nocturno, ou intimista, ou de recordação, mas onde sempre contrasta uma outra qualquer cor (rosa, vermelho, verde) para reequilibrar o espaço de representação. A própria composição das páginas, espalhando o texto corrido de vários modos e integrando-lhe as vinhetas, sequenciais ou de enumeração ou descrição, com falas ou sem elas, ou mostrando objectos isolados que se tornam numa espécie de símbolos do trecho narrativo, ou incorporando as cartas ou as páginas de jornais e revistas que os personagens lêem, revela as mais das vezes a polifonia e a flutuação que se mencionou. Há por vezes uma distribuição entre texto e vinhetas que sugere não uma continuidade da leitura dessa prancha mas o estabelecimento de dois eixos paralelos narrativos, cujo confronto nos obriga a uma dupla leitura, em que cada um desses eixos se complementará mutuamente.

Depreender-se-á, portanto, que todos os elementos do livro concorrem para um mesmo fim narrativo, o que releva, por sua vez, o acabado equilíbrio conseguido pela autora.
Uma última nota: True Love é apontado como a primeira graphic novel inglesa por Eddie Campbell no seu blog, em detrimento de uma outra publicação, de Bryan Talbot, assunto discutido aqui. No entanto, esse tipo de leituras e “primeiros” acaba por se revelar sempre um bocadinho frágil, pois não se apresentando um argumento que explique o critério de preenchimento dessa categoria da qual desejam eleger o original, permitir-nos-á, com Seth, apontar mais uma vez o livro The foreign Tour of the Misses Brown and Jones and Robinson, de James Doyle, de 1854. No entanto, é menos importante estabelecer uma hierarquia cronológica do que construir um discurso que empregue um sólido e aturado juízo de valor estético e, nesse sentido, parece-nos que Tamara Drewe encontrar-se-á numa primeira escolha, sem dúvida.

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