15 de março de 2008

Doom Patrol. Grant Morrison et al. (Vertigo/DC)

São muitos os autores que são apresentados como os arautos do pós-modernismo, mas os famosos versos de Yeats talvez tenham surgido como a sua mais clara fórmula e síntese, ainda que de tom negativo: “Things fall apart; the centre cannot hold;/Mere anarchy is loosed upon the world”. A perda de centro – dos “valores”, diriam os conservadores, de um quadro de referências, venham estes do campo da religião, da sociedade, da economia ou desse evasivo animal a que se dá o nome de “cultura” – é considerado pelos seus detractores como algo de negativo, obviamente, e toda as manifestações da dita cultura de massas são factores que exponenciam essa dissolução. O cinema, a televisão, a rádio, o jazz, o rock, o vídeo, os jogos de computador, e, claro, a banda desenhada. Pense-se em Kracauer, em Adorno.
Mas a perda de centro, e, consequentemente, a anarquia – “sem” archon, “chefe” – pode ser vista de um ponto de vista positivo, libertário, em que as barreiras e fronteiras são abolidas para permitir um trânsito feliz entre territórios, do qual poderão emergir soluções imprevistas. Tratar-se-á de uma contínua e feliz desterritorialização, um baile sem fim onde se troca de parceiros a cada volta e nos obriga, a cada vez, a termos de pensar, repensar e agir para nos adaptarmos. Houve pensadores também que encontraram na mesma situação o seu ângulo positivo. Walter Benjamin brilha no seu centro, outros viriam mais tarde.
Grant Morrison tem um objectivo geral em toda a sua obra, que é precisamente o de nos lançar nesse movimento perpétuo de nos desdobrarmos para fora, procurando novas maneiras de, acima de tudo, ser. E emprega um veículo privilegiado para o fazer, que é a banda desenhada. Doom Patrol foi um dos primeiros títulos, com Animal Man, de banda desenhada norte-americana de super-heróis – e por isso, de personagens que não pertencem aos autores, mas são marcas registadas das suas companhias - que Morrison escreveu, e não perdeu tempo em as transformar em laboratórios experimentais de metanarrativas, isto é, histórias que se pensam a si mesmas, ou que obrigam a reflectir sobre elas mesmas enquanto histórias, não permitindo que se erga a ilusão de que são apenas construídas para uma fruição simples.
Doom Patrol foi um título criado nos anos 60 pela dupla Arnold Drake e Bruno Premiani (ainda com Bob Haney) sobre um grupo de estranhos super-heróis, com corpos e poderes bizarros, e cujas aventuras os colocavam naturalmente em confronto com inimigos tão bizarros quanto eles – predicado de toda a ficção dos super-heróis. Em termos da história deste particular campo dos comics, importaria ver o quão diferente este grupo de personagens foi em relação ao que se criava na sua época (não podemos negar que Gould, em Dick Tracy, explorou profundamente a relação entre a estranheza dos corpos e as personalidades que albergavam), e quais as razões que levariam um outro grupo similar, os X-Men, a garantirem um maior sucesso– que terá a ver com estratégias comerciais e cruzamento dentro do universo Marvel, mas igualmente com a criação de histórias mais expectáveis -, mas esse seria um exercício retrospectivo, e que não permitiria entender que estas personagens, quando foram colocadas nas mãos de Morrison, eram simplesmente um produto sem qualquer risco, ou por outras palavras, lixo descartável e moldável conforme o autor bem entendesse. Morrison conseguiu isso mesmo, transformando esse “lixo” comercial num veículo verdadeiramente alquímico de transformações internas: das personagens, da forma de criar comics, de pensar esse tipo de narrativas, de reponderar a própria existência. Porque esta é uma das características mais fortes de Morrison e que o coloca como autor único (ainda que não “sozinho”) no panorama contemporâneo, a de empregar a banda desenhada como máquina de pensamento da ontologia humana. (algumas desta considerações desenvolvem-se da leitura do primeiro ensaio, e outros, do livro agora online de Steven Shaviro, Doom Patrols, que convido os leitores a descobrir).
Não podermos dizer que existe uma personagem principal, já que se trata de um grupo de super-heróis, mais ou menos flutuante, não apenas em relação ao número de membros (oscilando entre os seis) como também à natureza desses membros (Crazy Jane, que tem - não “sofre de” - personalidade múltipla; Rebis, que é duas pessoas, homem e mulher, num mesmo “casamento químico”). Não obstante, uma vez que muitos dos episódios começam ou se centram nas percepções de Cliff Steele, um ex-piloto de automóveis que, depois de um acidente (outra das premissas dos super-heróis, a catástrofe que impele à emergência do heroísmo – e a realidade norte-americana parece beber cada vez mais desse princípio pertencente até à data apenas ao círculo ficcional) acaba por ver albergado o seu cérebro num corpo de robot e, mais tarde ainda, destruído o seu cérebro, mas a sua “vida” salva num disco digital. Ou seja, paulatinamente, Cliff deixa de ser um homem em termos biológicos, e passa a existir numa potencialidade de cópia (o disco). É ainda “um homem”? É uma “pessoa”?
Devemos alertar, para os que não leram Doom Patrol, que apesar destes pontos de partida, ou de chegada, esta é uma série que se diverte e nos diverte em cada trama individual, em cada nova aventura, com todos os clichés, ingenuidades e soluções do género de comics em que se insere. Digamos que não oculta o que é em primeiro lugar – aventuras descartáveis de super-heróis – mas, bem pelo contrário, aceita de braços abertos essa mesma condição. O que não deixa de ser, mais uma vez, o princípio positivo do pós-modernismo, um entendimento de que não é possível criar-se “de novo”, por isso mergulha-se numa prática contínua de “refazer” (este ponto é discutível, mas fica, por ora, suspenso).
Steele, portanto, pode ser a personagem que assinala uma possível perspectiva central em torno da qual se organizam as histórias de Doom Patrol escritas por Morrison (e que agora acabaram se ser compiladas em seis trade paperbacks). Ele marca, na sua própria existência, alguns dos binómios explorados na série: corpo mecanizado/personalidade fluida, ciência/metafísica, segurança da razão/angústia existencial, objectivismo/subjectivismo. Quer o objectivismo quer o subjectivismo são, a seu modo, mitos, isto é, histórias, isto é, estruturas que tentam criar uma ilusão de ordem onde os elementos são eles mesmos fluidos e fluida é a relação que estabelecem entre si. Por isso mesmo não deveremos crer que cada uma dessas histórias subsista solitariamente, mas antes que se reforça ou que faz emergir uma imagem mais completa se uma se cruzar com a outra, criando uma história mais complexa, em que a primeira bifurca na segunda, e esta nos reencaminha àquela. George Lakoff e Mark Johnson, em Metaphors to Live By (1980) advogam por uma terceira posição, uma espécie de juste milieu, a que dão o nome de experiencialismo e que encontra na metáfora o seu mais acabado veículo, e que “une a razão e a imaginação”, perfazendo “uma racionalidade imaginativa”. Em todo o caso, é precisamente a maneira como falamos, empregando metáforas nas mais banais das comunicações, e em todas as instâncias das nossas vidas. Mais, explicam os autores que a “verdade” – que os mitos indicados anteriormente julgam existir no seu seio exclusivo – é algo “relativo ao nosso sistema conceptual”. Por isso Morrison bombardeia os seus leitores com uma chuva de conceitos, esperando que dessa chuva haja elementos que embatam uns nos outros, provocando uma reacção imprevista. E pela mesma razão controla o sistema conceptual das suas personagens, alterando um primeiro sistema por outro, e este por um terceiro, em catadupa, provocando um desequilíbrio permanente no solo existencial destas personagens. O controlo de Morrison não pode jamais estar fora de vista, pois mesmo que o acaso tenha sido empregue na construção das histórias, elas são estruturadas por ele. É ele o Primum Mobile dos universos que cria, ainda que abra espaço a manobras mais livres. Esta situação encontraria o seu corolário no famosíssimo diálogo entre a personagem Animal Man e seu autor, o Morrison real – claro que transformado em personagem interno à narrativa, criando-se a ilusão de uma ascensão a um nível diegético exterior à própria diegese, no “mundo real” que partilhamos.
Metáfora, como se sabe, significa “transporte” etimologicamente. Trânsito, empregar um significado x num objecto y, e com uma fluidez apenas limitada quão limitada for a capacidade de associação de quem a crie. Quantos momentos de transição poderemos contar nos arcos narrativos de Grant Morrison para a Doom Patrol? Steele mudando de corpo, acordando de pesadelos. Planos de existência ficcionais abrindo-se para a realidade e sangrando elementos, reescrevendo-se como o mapa de Borges por sobre o mundo. Tentativas de diluir os mundos oníricos particulares de uma personagem com a percepção consensual de todos. Exercício, o mais provável, esgotante, mas seguramente produtivo. “Doom Patrol é menos uma fantasia surreal do que uma abordagem naturalista do nosso espaço cultural super-saturado”, escreve Shaviro.
Por um lado, essa oposição entre objectivismo e subjectivismo expressa-se nesta série em todos os maniqueísmos que nela surge: ciência versus o aberrante, loucura versus normalidade, status quo versus mutação acelerada, luz contra escuridão, etc. (maniqueísmos que seriam explorados por Morrison em obras posteriores, num espectro diferente de complexidade e evidência, como The Invisibles – obra-prima daquilo que poderia ser chamado de “hiperhipodiegese” ou, mais curto e cool, “hiphopdiegese” - e The Filth – que revela antes da metatextual). Mas bem vistas as coisas essas dicotomias acabam por ser desconstruídas, e há momentos em que um termo não se parece diferenciar um do outro: a sociedade secreta do Pentágono parece tão absurda quanto o absurdo que pretende erradicar, o mal da Irmandade do Dada dilui-se na quase-juvenil hilaridade dos seus projectos, o carácter benigno do líder e cientista Niles Caulder revela uma atroz e fria capacidade e desejo de domínio absoluto. Caulder bebe directamente daqueles ramos de ciência em que as distinções mencionadas acima acabaram por ruir em parte – as teorias da catástrofe, do caos, do infinitesimalmente pequeno, onde os nossos instrumentos falham, onde a própria noção de instrumento falha, onde a noção de noção não tem lugar.
Um outro aspecto singular é que a mudança dos artistas desenhadores – podemos contar mais de quinze nomes neste série, ainda que Richard Case se mantenha como o basso continuo -, apesar de ser uma consequência da prática corrente da produção fordista do mainstream norte-americano, torna-se em Doom Patrol um sintoma dos universos que acaba por representar nos vários episódios: aqueles que constituem as várias camadas “por detrás” ou “além” da realidade consensualmente tangível, ou aqueles que se prendem às flutuações perceptivas das próprias personagens, sobretudo Jane e Cliff, como vimos. A transformação daquilo que seria uma fraqueza (um enfraquecimento do trabalho de verdadeira colaboração pela multiplicação dos artistas a soldo) num trunfo estrutural já havia sido notado por Douglas Wolk, a propósito de The Invisibles. Se em Animal Man isso não se verificou, precisamente por se associar a uma só personagem (assim como nos seus trabalhos anteriores e outros que viriam no futuro, como os presentes títulos em que trabalha), parece que Morrison explorou essa dimensão aqui de um modo consciente e intencional.
The Invisibles, The Filth, até mesmo o seu trabalho com a Justice League of America ou os X-Men, e, mais recentemente, o seu ciclo “remake” dos Doze Trabalhos do Super-Homem (All Star Superman) foram feitos num momento em que o seu poder decisório é maior – capacidade de controlo, de viragens “arriscadas” comercialmente, em que a sua fama o precede e o transforma numa mais-valia – e em que a sua agenda sobre as teorias de emergência são claras. Doom Patrol foi feito numa altura em que isso não era um dado adquirido (e por isso demorou algum tempo até estarem disponíveis estas edições em livro). Isso torna-o, como disse ao princípio, num interessantíssimo laboratório de conceitos, num veículo de Gedankexperimenten, como tive oportunidade de explorar num artigo sobre Morrison na revista Vértice (no. 124, de Setembro-Outubro 2005). Não se tratando de uma mecanismo e jóia de relojoeiro como seria The Invisibles (em que a aplicação do conceito de tressage, de Groensteen, explodiria numa miríade de implicações), nem num exercício extremo de bonomia e leveza como o (seu) Super-homem, Doom Patrol é ainda assim como que uma cultura de elementos que Morrison colocou num mesmo espaço e os deixou cruzar para permitir crescimentos tão inesperados quanto inevitáveis, e excrescências que se revelam de um valor criativo inestimável.

3 comentários:

Anónimo disse...

"Grant Morrison tem um objectivo geral em toda a sua obra, que é precisamente o de nos lançar nesse movimento perpétuo de nos desdobrarmos para fora, procurando novas maneiras de, acima de tudo, ser."

Como no The Filth, em que o personagem principal trava uma batalha exterior que desemboca numa revolução interior, que não só não afecta o status quo, como o torna no agente da sua manutenção. Dois papéis que à partida parecem ser imiscíveis tornam-se na evolução um do outro; ambos passam a ter significados diferentes. Tanto quanto me parece, é um exercício que nem sequer se preocupa com a desconstrução de arquétipos (não deixando de o fazer), vai para além disso. Como se fosse a descontrução da desconstrução (?).
Ainda não li o Doom Patrol.

Pedro Moura disse...

Sim, é isso mesmo. O Morrison é uma pessoa não apenas inteligente (ou talentosa) como esperto (ou informado). Ele sabe muito bem o que faz, porque o faz, como o faz. Esse desdobramento é também visível em "The Invisibles": há um momento em que não nos apercebemos quem são os "bons" e quem são os "maus", e as personagens que seguimos até agora parecem ser afinal os agentes que combateríamos... Um pouco como os Jedis para os fãs da primeira trilogia e o choque com os novos episódios... O bem ou o mal depende do lado do tabuleiro em que estamos, como é óbvio. Morrison constrói ficções "cubistas", dando-nos por vezes os lados opostos do tabuleiro ao mesmo tempo.
Pedro

José Eduardo Bertoncello (JEB) disse...

Patrulha do Destino dá dor de cabeça para os menos preparados. Eles olham para esse quebra-cabeças de Grant Morrison e se acovardam. Já li na Web uns absurdos vindos de mentes mais estreitas que eram praticamente como dizer que se as palavras cruzadas não viessem com respostas eram coisa sem graça e idiota.
Patrulha é avó de Lost e Matrix. É um dos títulos que cimentaram as fundações do selo Vertigo, e lamento não haver mais coisas assim hoje. Kid Eternidade também é excepcional, também fruto daquela época áurea da Vertigo, assim como Shade - O Homem Mutável e outros.
Gostei muito de achar seu blog e esta postagem da Patrulha.
Vida longa e próspera.