21 de maio de 2024

Le Dieu-Fauve. Fabien Vehlmann e Roger (Dargaud)

O que é o Dilúvio? De uma forma corriqueira, é um avanço repentino e tumultuoso de águas sobre superfícies que usualmente não lhe estão subjugadas. É também um mito, uma história, que na nossa cultura tem presença no Épico de Gilgamesh e, mais tarde, nas narrativas que seriam agregadas nos textos judaicos e cristãos, mas tem algumas presenças semelhantes em outras culturas não-aparentadas, como do povo maia ou os ojibwe. Mas pode ser visto também como uma maré de algo que nos subleva, que nos altera, de forma irresistível, profunda, transformadora. Algo que até poderíamos imaginar não possuir e, nesse repente, se revela e nos transforma. Neste livro, há um dilúvio literal: ondas que engolem as terras e tudo destroem, mudando ou derrubando a ordem até ali vigente. Mas há outra: é também a vaga que vai e vem, súbita e sangrenta, do Sem-Voz, tornado a arma demente de morte chamada de “Deus-Selvagem”, empregue em combates de gladiadores, de significado religioso e ritual. (Mais)


A narrativa deste álbum bastante clássico de banda desenhada começa com uma perspectiva sobre a vida de várias famílias (ainda não são bem “tribos”) de animais, sobretudo do que parecem ser macacos-berberes (um verdadeiro macaco, mas cuja cauda é vestigial), hienas, um crocodilo, etc. São os primatas os protagonistas, e diferenciamos vários membros, sendo introduzidos àquela que será a personagem principal, chamado (por quem?, não há uma linguagem articulada, mas acreditamos que mesmo as vocalizações que fazem apontam a conceitos breves e simples) de “Sans-Voix”, Sem-Voz, e às redes de alianças, amizades e tensões. Como se fosse o início do 2001 de Kubrick, observamos, ainda que conduzidos por uma voz narrativa externa, que nomeia as famílias (“Os-que-se-põem-de-pé”, os “maxilas-cinzentas”, o “boca-comprida”), a sobrevivência, um início de cultura, um tabu geográfico, uma desobediência e o castigo maior. É assim que, passadas 20 páginas (quase um comic book), somos introduzidos ao mundo humano, e estratificado, do resto do volume.


O livro está dividido em 4 capítulos com nome, mais um epílogo. Essas divisões não são apenas de momentos-chave narrativos. Uma das características de Fabien Vehlmann, recorrentes em alguns dos seus trabalhos, é a capacidade de “dar palavra” às várias personagens, ficando na responsabilidade do leitor o acesso a um mosaico desconjunto que depois vai reconstruindo, mesmo não tendo todas as ligações. É como se criasse um mapa fragmentário, ocluso em detalhes, por vezes mesmo enganador, mas que mesmo assim nos faz navegar a uma impressão de mundo e ligações e, por isso, sentido. Esses capítulos permitir-nos-ão, portanto, ir vislumbrando todo este mundo através das flutuações de protagonistas através das várias classes sociais e de funções desta sociedade. Capítulos que, graças a essas diferentes perspectivas, navegam em analepses diferentes, e nos vão fazendo compreender, com surpresas, as relações entre as personagens, que pensáramos serem de uma natureza mas a cada passo revelam ser mais profundas, complexas e armadilhadas.


O livro não apresenta qualquer contextualização explícita, nota, ou suficientes informações para compreendermos se estamos na “nossa” Terra (fala-se do impéio Oceânido, e das Cíclades, mas serão as mesmas da nossa timeline?). Algumas notícias externas, porém, dão-nos a entender que se trata de uma história passada em miticos tempos “antediluvianos”, e não empregando esta palavra como metáfora de lonjura temporal, mas literalmente apontando ao momento da transformação do mundo dada pelo Dilúvio, o mito de que falámos acima. Nesse sentido, está próximo daquele tipo de high fantasy que Jason Aaron e r.m.Guéra nos ofertaram com The Goddamned. Também aqui nos concentramos em disputas palacianas, jogos políticos, etnias distintas pelas culturas e línguas e costumes, uma ligeira mistura de estados da civilização, que de resto são também uma antiga herança de toda uma tradição da literatura popular (Conan Doyle, Rice Burroughs, Haggard, etc.).


Este género permite uma grande liberdade aos autores poderem lançar mão de vários fundos culturais, sem o perigo de as essencializar, ou pelo contrário, permite-lhes precisamente jogar com essencializações de várias culturas e construir criaturas de Frankenstein, deixando que os leitores, mais uma vez, usem as pistas reconhecíveis para criarem inferências. Regra geral, o povo no poder parece ser de origem africana subsariana, mas há claramente outros povos envolvidos, o que permitiria, ainda, uma leitura geopolítica da história e da contemporaneidade bem estimulantes. Aliás, a noção de “escravatura” é mesmo discutida no livro, sobretudo no “clímax político” (mas não da narrativa central) do livro, em que se procuram explicar as razões da sua função e papel nesta sociedade, que não pode deixar de ser lido à luz da nossa posição contemporânea, e até mesmo momento específico de responsabilidade perante a cada vez mais clara persistência de sistemas de opressão sócio-económicos que podem disfarçar a palavra, mas não a erradicam como substrato do nosso conforto.


Isto também leva a que os autores possam propor toda uma série de conceitos interessantes em termos de alimentação, trajes, objectos, cenários naturais, rituais, diversos mas coerentes, e estratégias diversificadas de composição, quase sempre buscando grandes efeitos de dramatismo e cinetismo. Páginas silenciosas vs. momentos “pesados” de exposição, cenas rápidas e dinâmicas vs. longos travellings sobre os cenários, etc.


O artista espanhol Roger Ibañez Ugena, que assina apenas o seu primeiro nome, é sobretudo conhecido pela sua série Jazz Maynard, escrita pelo seu colega de curso e compatriota Raúle Anisa Arsís, que por sua vez assina como Raule. Essa série angaria-lhe uma atenção merecida, devido ao seu elegante e líquido traço, que recorda uma espécie de encontro feliz entre a escola da “ligne sombre” de todo um rol de autores dos anos 1930 e 1940 clássicos americanos, e uma estilização Art Nouveau. Essa expressividade ganha ainda mais força e presença neste livro pelo uso de cores muito limitadas e contrastantes, ora de cinzentos azulados para cenas nocturnas iluminadas pela lua ou outras iluminações difusas, ora verdes esbatidos para mostrar paisagens naturais, laranjas luminosos quando surgem fogueiras, ou um terrível duplo vermelho quando a violência nos assalta momentaneamente. E, claro, o fulgurante branco imaculado de Sem-Voz/Deus-Selvagem, surgindo como um relâmpago nos momentos que protagoniza.


Como vemos, e também é costumeiro nos livros deste escritor, há sempre um propósito filosófico mesmo em trabalhos cuja superfície pare esgotar-se em aventuras, fantasia e maravilha. No caso de Le Dieu-Fauve, estuda-se o papel da violência. Também se poderia falar de “opressão”, “escravatura”, “hierarquia”, “classes”, “racismo”, e todos esses conceitos são explorados de forma claríssima ao longo desta centena de páginas, como já apontado. E com uma conclusão que periga a esperança. A jovem escravizada, Awa, na mais baixa posição das quatro personagens (as outras duas são um aedo de um mundo que acaba de desaparecer e a guerreira-treinadora que tranforma o jovem macaco numa temível força destrutiva), é aquela que se parece revestir com o papel da personagem idealista, que deseja um futuro mais justo, livre, talvez mesmo “democrático”, se a palavra fizer sentido neste contexto. Mas aquela noção da violência, ou todos os outros conceitos, surgem como são parte intrínseca da sociedade humana. Inevitável. É uma procissão de desilusões, inclusive aquelas que os protagonistas se infligem a si mesmos. Um dilúvio.

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