17 de maio de 2024

Sílvia. Pepedelrey (auto-edição)

Pepedelrey tem criado toda uma série de pequenas publicações através do seu selo editorial, na qual vai explorando, da sua forma livre consabida, pequenos relatos onde o humor pode viver lado a lado com uma crítica mordaz da sociedade actual, as diatribes de bicho isolado se unem à atenta participação, a capacidade de vislumbrar a vida dos outros se confunde com a irritação da imbecilidade generalizada. Sílvia é, talvez, uma pequena excepção, como gesto de estranha empatia.


Na história da banda desenhada, podemos encontrar várias instâncias de peças que, com humor, criam desvios em termos da representabilidade dramática mais usual, escolhendo ângulos, proximidades ou vistas “pouco naturais” - closes-ups extremos, planos em zénite ou nadir, perspectivas de dentro da cabeça das personagens, focalições zero, etc. A título de exemplo, o autor holandês Jan Linse tem uma peça publicada por volta de 1870, na Humoritisch Album, intitulada “Um romance em quarenta pernas”, de apenas 8 vinhetas, mostrando, no fundo, uma sequência em torno de um romance “assolapado” entre um cavalheiro e uma dama e, depois, os pais desta. Este tipo de “limitações” auto-impostas conduz a exercícios oubapianos, ou outros, curiosos, que servem um propósito de humor, de novas perspectivas, e ao mesmo tempo de revelação da linguagem oculta, física, emocional ou outra, das suas personagens. Numa antologia de 1999, Paroles de Taulards (“Palavras de reclusos”), reunindo testemunhos e vidas de reclusos prisionais, Edmond Baudoin também deu corpo a um dos testemunhos sem jamais mostrar-lhe o rosto, como se se pretendesse, a um só tempo, demonstrar a perda de humanidade ao se viver numa prisão mas ao mesmo tempo defender a última possibilidade da dignidade humana que lhe restaria. (mais) 


Em Sílvia jamais veremos o rosto da protagonista nomeada. O autor providencia-nos com uma nota introdutória que pretende criar um efeito de referencialidade real. Na contra-capa, uma data limita a vida dessa suposta pessoa. A questão aqui não é a de imaginar se se diz “a verdade” ou não, mas sim a ideia de “verdade” que desses gestos nasce. Sílvia foi uma mulher, trabalhadora do sexo, prostituta nas ruas de Lisboa, que viveu a sua vida. Multípla, como a de todos, estes serão “retalhos de uma vida” em torno dos seus giros pela calçada. Alguns relatos são de uma página só, outros estendem-se por três, a maior parte em duas. Com pequenos títulos, isolam as experiências. Na maior parte das vezes, apenas vemos as pernas e/ou pés de Sílvia: saltos altos ou botas de plataforma, meias de rede ou de vidro, aqui de mini-saia, numa ocasião de calças, noutra de cinto de ligas. Apenas num caso vemos o seu corpo pelas costas, ostentando o rabo virado para nós. Separando desses modos cada “unidade narrativa”, ficamos com acesso a estes fragmentos com os quais vamos poder reconstruir uma impressão da vida de Sílvia, da sua experiência.



Não são apenas relatos dos factos da vida de prostituta, quanto se paga, o que se faz, o tipo de clientes, variados, as rotinas de rua. Há pensamentos. Sem qualquer tipo de ironia ou menosprezo, Sílvia é uma cidadã que pensa a saúde pública, o ambiente, a urbanística. Tem vontades próprias e quereres. Analisa os outros e acerta nas suas psicologias. E, ao longo de tudo isto, é um ser político, que pensa que significa ser-se e ser-se em sociedade.


Breve gesto, de 23 pranchas, Sílvia acaba por ser um brevíssimo tratado de experiência, fora de juízos fáceis e que cria uma voz e presença de alguém que chegou, viveu, morreu, alguém de que, como se escreve no prefácio, “ninguém soube, ninguém quis saber”. Talvez, talvez, lendo, se queira saber.

3 comentários:

  1. há algo dos bros Hernandez nessa capa...

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  2. que comparação mais parva!
    o sr. positivos não sabe o que diz!

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  3. amigx: qualquer opinião online que não reforça a que já temos é obviamente uma opinião parva
    (saíste debaixo de uma pedra hoje?)
    mas como é sexta-feira, estamos em fórum alheio e é a paciência do PM que estamos a testar...: conta-me mais!

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