16 de maio de 2012

Futuro Primitivo. AAVV (Chili Com Carne)

Confessamos que não compreendemos por que razão os editores desta antologia afirmam, na introdução, de que esta é uma experiência “falhada”. Tecnicamente, trata-se de uma recombinação editorial feita sobre material que os autores providenciaram, ora sob a forma de tiras passíveis de serem quebradas e remisturadas, ora várias sequências em cadáver esquisito. A influência deste projecto parece ter sido semeada no tour do Boring Europa, como essa outra publicação demonstra. Todavia, a experiência editorial - que segue os projectos lançados por Marcos Farrajota que procura sempre soluções inovadoras e arriscadas num dito mercado nacional mas que encontra uma recepção francamente positiva noutros circuitos - que temos neste Futuro Primitivo parece-nos ter atingido o seu resultado prático justo. (Mais) 

Se bem que os materiais reunidos sejam bem diversos, e pudessem ter sido montados ou apresentados em configurações múltiplas e mutantes, fragmentos (ou estilhaços, para tentar respeitar a atitude guerrilheira do espírito geral), seja como for, o que o leitor tem na mãos com esta publicação - presumindo que cada exposição de que foi alvo tivesse apresentado os materiais heteróclitos de modos diferentes - é uma linha contínua e fechada de elementos a ler, mesmo que não seja nem linear nem contínuo o que acaba por ter de interpretar…

Terá que ser lido caso a caso quais os autores que participaram no cadáver esquisito - visível pela maneira como o elemento de uma vinheta penetra na seguinte, ou um diálogo é continuado (como o conflito entre um falso Messias e o Raptor Jesus entre Filipe Quaresma, Afonso Ferreira, André Lemos e Rudolfo, ou a cena pornográfica no deserto entre David Campos, Daniel Seabra Lopes, Rudolfo e Pedro Brito) -, quais os que enviaram uma sequência narrativa completa, mesmo que ela tenha sido quebrada para a remistura final (é o que nos parece haver no caso de José Feitor, Daniel Seabra Lopes, Bruno Borges, Jucifer, parte da intervenção de Pepedelrey, e claramente as sequências de André Coelho, Sílvia Rodrigues e Andreia Rechena e as “histórias” de Pedro Brito, Rafael Gouveia e Rudolfo) - e quais os que ofereceram claras cenas isoladas, plástica ou iconicamente seriais mas ao mesmo tempo com uma capacidade de serem lidas singularmente (o caso de João Maio Pinto ou Afonso Ferreira). Mas de novo, a fabricação de um livro circunscreve essa circulação e faz com que a leitura obedeça a eixos fechados. Logo, será correcto sequer identificar essas prestações de modo isolado, sem as ler como parte integrante num tecido maior, que é o livro?

Tendo conhecimento de algumas antologias nacionais e internacionais, é realmente bizarro que a atenção para com este projecto seja pautada por um silêncio quase consensual, apesar da franca “vanguarda” que ela apresenta. Como saberão os leitores do lerbd, pouco nos interessam a angariação de “estrelas” ou “bolinhas” que pautem a qualidade a partir de uma bitola sempre idêntica, quando acreditamos que os instrumentos de fruição e crítica se alteram conforme o que se lê. Logo, não estaremos à procura aqui de uma hierarquia de valores nem de concursos, mas de facto perante Futuro Primitivo estamos mais uma vez - junto a Mutate & Survive, Massive, Destruição, Boring Europa - perante um gesto editorial de fôlego e risco, como havíamos dito. Se usámos a palavra “vanguarda”, a razão é mais pelo seu aspecto político do que estético, já que necessariamente a união entre tantos autores díspares leva a uma mixórdia cacofónica digna de um John Oswald. Provavelmente estaremos a ser desrespeitosos para com o projecto musical (ou sonoro, se preferirem) criado exclusivamente para esta antologia por um outro grupo de artistas (alguns dos quais coincidentes com os artistas, como os casos de André Ruivo, Pepedelrey, Marcos Farrajota, João Maio Pinto), mas quer no caso do conhecido artista noise quer no destes músicos, o resultado é uma amálgama disruptiva, discordante, contraditória mas ao mesmo tempo fantasmática e com a capacidade de estimular novas conexões (estrutura prevista quer na própria visualização da capa e na serigrafia de Miguel Carneiro, que reformula a ambiência nas chamas…). Há mesmo uma história contada por “Marte” que está ligada directamente ao ambiente explorado no livro.

Se o cenário pós-apocalíptico que foi proposto pelo grupo editorial teve respostas variadas, essa era uma consequência natural e segura pela quantidade de autores a participar. Mais uma vez, compensará ler a participação dos artistas isoladamente, e ver quais os que providenciaram imagens e cenários expectáveis - ou melhor, típicas do género, pois em termos realistas, o apocalipse já está em curso há alguns anos - e quais os que apresentaram fugas totalmente inusitadas (como o caso de Christina Casneille, citando textos da anti-diva Natália de Andrade), ou os que apresentam o que parece ser um retrato dos factos actuais (Bruno Borges). Alguns autores não parecem necessitar de se desviar das suas matérias plásticas e narrativas habituais para se aproximarem da estranheza de um hipotético amanhã - André Lemos e Pepedelrey - e outros aproveitam para colocar as suas obsessões e instrumentos de sempre ao serviço do projecto - Rudolfo ou Jucifer.

Mas a importância desta antologia, no seu gesto global, vai muito para além da mera narrativa multifacetada que pode ser recriada na sua leitura. O aspecto político estará associado, como é de esperar, aos ensaios de John Zerzan, o qual, mais importante (a nosso ver) do que a sua advocacia por um regresso dos seres humanos a um estádio civilizacional “caçador-colector”, é a sua extrema atenção crítica para com os chamados “progressos” da nossa civilização, quase sempre envolvendo um fetichismo primário em torno de desenvolvimentos tecnológicos, ao mesmo tempo que esse fascínio cria uma cegueira quase absoluta para com os seus elementos socializantes e políticos, que apenas contribuem para um consenso cada vez maior da hegemonia em vigor. Aliás, quem se apresentar “contra” essa hegemonia - seja recusando ter um telemóvel, ou viver do que a terra dá, ou querer encontrar alternativas à economia de mercado -, será alvo de ridículo antes mesmo de qualquer grau de procura de entendimento e consequente crítica. Não haverá pior combate às ideias do que o encolher dos ombros da indiferença. Existirão paradoxos imediatamente nestas tomadas de posição - afinal, utilizam-se meios digitais de comunicação, criação e distribuição, integram-se os projectos nos canais comerciais tradicionais, com as implicações financeiras eseradas, associam-se os textos e os autores a um circuito predeterminado de encontros “exclusivos” (festivais de banda desenhada) - mas, mais uma vez, esses mesmos canais poderão servir de palco para a discussão de práticas criativas, económicas, políticas, de resposta ao mundo.

Por um prisma ou por outro, são abordadas em Futuro Primitivo - que também poderia chamar-se Futuro Próximo ou Futuro Já - os novos tipos de opressão política que começam já a ser visíveis, as relações entre a ciência contemporânea e os limites da ética ou o aproveitamento económico que dela pode advir, as fronteiras entre o humano e maquínico, entre o orgânico e o pós-orgânico, a quase segura destruição a longo prazo e de modo permanente se se empregarem determinados tipos de armamento nos conflitos futuros (biológicos, nucleares, etc.), os fundamentalismos religiosos que emergem no interior das nossas crenças (que precisamente por serem familiares são mais insidiosas, e até invisíveis, nessa emergência), a forma como a natureza poderá responder aos abusos da humanidade, ou que podemos esperar dela se a ela voltássemos, o que a solidão ou isolamento social dos humanos pode significar na sua prática da violência, o retorno do reprimido… Nesse(s) sentido(s), parece-nos que esta antologia responde a tudo e de uma forma articulada e significativa.

Falhanço? Ou trata-se isso de um exercício de contradição face aos discursos habituais das “vitórias” e “sucessos”, no campo em que apenas se vasculha na continuidade de sempre?
Nota: agradecimentos a Filipe Abranches, pelo empréstimo da sua cópia, e aos artistas por disponibilizarem as imagens aqui utilizadas, com excepção da capa, fotografada.

3 comentários:

  1. se calhar falhou porque já não podia olhar para o livro (ainda não posso)... creio que é a primeira vez que se tenta fazer algo assim e foi uma "dor de cabeça" resolver o puzzle.
    obrigado pela crítica e apoio, será bom rever o livro um dia destes! hehehehe
    abraços
    unDJ MMMNNNRRRG

    ResponderEliminar
  2. Compreendo a atitude "já não posso com isto", mas agora o livro pertencerá aos leitores, e esperemos que o livro encontre os que lhe estão à altura.
    Pedro

    ResponderEliminar
  3. têm encontrado, curiosamente... e gostei do comentário de uma autora sueca que participou no livro:

    I thought one great thing about Futuro Primitivo was that I couldn't understanding all of it. It felt like that was the point, like a global, multidimensional dystopia and you only understand the bit you can see with your own eyes. On the other hand, I think that was my very own subjective reading experince (I understand a little Portuguese but not enough to be sure what the comics were about, a bit like dreaming and half-understanding).

    isto rendeu todo o caos da produção do livro / expo / b.s.o.

    abraços
    M

    ResponderEliminar