Gaylord Phoenix é um objecto difícil de categorizar em adjectivos que nos permitam explicar-lhe os horizontes habituais de expectativa. É um livro de art comix, por um lado, mas por outro uma saga de ficção científica/high fantasy relativamente linear. É uma narrativa cujos elementos são muito fáceis de identificar e devolver numa sinopse mas a sua forma altera a maneira habitual com que eles são manipulados. É um livro que tem uma faceta estranha, contemporânea, disruptiva, mas que a ancora numa tradição nítida e convencional. Tendo sendo publicado sob a forma de fanzines, este volume reúne toda a saga e torna-a acessível a um público mais alargado. Essa, na verdade, é uma tendência verificada em vários sectores contemporâneos dos mini-comics norte-americanos, que têm acesso à colecção através de toda uma série de plataformas editoriais independentes pequenas, mas mais dadas a projectos que dificilmente se encaixam nas categorias já previstas quer no dito circuito mainstream quer no alternativo (falamos de selos tais como Secret Acres, mas também AdHouse, Wow Cool, Koyama Press, mas também a britânica NoBrow, entre tantas outras).
Como já havíamos apontado a respeito de Forming, este livro integra-se nessa tendência, então, de estratégias expressivas e comerciais, cada vez mais visível e influente. Nela, misturam-se pressupostos da banda desenhada mais convencional (em termos de género, narrativos, de elementos episódicos, etc.) e da alternativa (uma atenção particular para com a camada formal e estilística da banda desenhada em detrimento de uma fluidez maior, temas dissonantes à homogeneidade, etc.). De facto, verifica-se em Gaylord Phoenix uma mistura estranha entre a experimentação formal, inclinações independentes mas também elementos temáticos e narrativos afectos ao mainstream (a ideia de aventura, as cenas de luta, gradualmente mais complexas e difíceis, a estrutura devedora quer à ficção científica quer à high fantasy). E, o franco processo de queering up destes temas e configurações é provocador.
Será esta uma perspectiva errada? Que tipo de recepção terão Maurice Vellekoop, Alison Bechdel, Roberta Gregory, Howard Cruse, nos seus trabalhos mais sexualizados? Não será diferente das expectativas relativas à banda desenhada erótica e/ou pornográfica “heterocêntrica” ou “heteronormativa”? Mesmo que procurem uma diferença mínima, como a Bd Cul? Não se fazem homenagens a “mestres” como Manara e Serpieri mais rapidamente que a Tom of Finland em contextos alargados, e não “de nicho”? E se pensarmos em títulos como Shirt Lifters ou Girlfiend?
A desestabilização que a distribuição de papéis da teoria queer propõe ou estuda encontram-se presentes na maneira como o protagonista sofre e se sente ameaçado pela força que lhe é interna, a tal doença, que pode ser vista tanto como infecção como fantasma. Se nos é permitido o reparo, perguntamo-nos se não haverá aqui uma claríssima referência à “saga da Fénix” dos X-Men de Claremont? Mas a disrupção criada por Fake é também interior à própria expressão da sexualidade. Não estamos aqui a ler um livro cujos temas abordem as relações homossexuais na nossa sociedade, quer vistas da perspectiva dos obstáculos sociais e políticos que se enfrentam (como no caso do já clássico Stuck Rubber Baby ou no Journal de F. Neaud) quer na da celebração alegre (outro significado original de “gay”) da sexualidade (por Tom of Finland, por exemplo). A dimensão da ficção e dos elementos típicos de certos géneros torna-a mais “universal”, naquele sentido de texto legível para fora das fronteiras que se lhe quisessem impor.
Na sua tese publicada, La bande dessinée et son double, Jean-Christophe Menu discute a noção da “erosão progressiva das fronteiras” em relação à banda desenhada, território o qual, sobretudo nos tempos presentes, em que já não se trata de uma linguagem de massas, mas antes uma disciplina atomizada em diversos campos sub-culturais, ela se encontra aberta à contiguidade com outros campos artísticos. A banda desenhada, escreve Menu, “quando não se contenta em se imitar e se digerir a si mesma [o que ocorre em larga medida no seio dos territórios mainstream, alegres em repetir fórmulas ad aeternum], sabe-se abrir-se a muitas outras disciplinas, bebe de outras experiências, e, abrindo-se a outras coisas, desdobra-se”(pág. 366). Fake mistura saberes que vêm da tatuagem, da ilustração, do desenho livre, da música, da composição tipográfica, da colagem, do détournement de materiais gráficos de várias origens, e emprega tudo no propósito narrativo desta saga de Gaylord Phoenix.
O objecto-livro, na sua materialidade, é muito belo. O arranjo da capa (assim como as das versões originais), a organização dos cadernos, a utilização gradual de uma segunda cor, a alteração desta mesma cor, o uso de padrões e estratégias decorativas, a paginação, etc., concorre para a tal dimensão estética formal que tanto respeita a contemporaneidade visual, mais do que um mero programa narrativo-figurativo. Porém, a escolha de ter algumas imagens em duas páginas, e mais, o fulcro da acção no centro da mesma, coordenada com a encadernação - tradicional, com oito cadernos dobrados e colados à espinha - é feita de uma maneira que nos impede de ver a imagem completa, o que é senão, e muitas vezes é até um momento importante em termos da acção.
No cômputo final, talvez o prazer da leitura de Gaylord Phoenix não e encontre exclusivamente na apreciação da sua história, nem das suas imagens, nem tampouco no próprio objecto - ainda que cada elemento, assim destacado, tenha os seus fortes. Encontrar-se-á antes na constatação de uma nova diferenciação e negociação entre os géneros da banda desenhada, as categorias artísticas, os supostos “mundos”, e o modo como demonstra que o trânsito é de facto cada vez maior, diversificado e inevitável, em nome do desenvolvimento descontraído desta área de expressão.
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