Tendo escrito anteriormente sobre a voz singular de Inio Asano, inclusive quando o primeiro volume desta série foi publicado em português, remeto a essas ideias para a introdução desta obra que se estende numa tensão constante entre o quotidiano e o abismo. Chegamos agora ao volume 4, confirmando e aprofundando essa inclinação deste Bildungsroman, ou” romance de formação”, com a sua inflexão profundamente melancólica, quase espectral, desestabilizadora dos pressupostos mais clássicos desse género literário.
Punpun, o protagonista, é agora um adolescente atravessando os costumeiros ritos esperados da juventude: escola, família, primeiros amores, rivalidades, conflitos ridículos, violências de todo o grau, desilusões. Mas fá-lo como uma figura graficamente reduzida a um pictograma, um rabisco minimalista, quase uma nota de rodapé visual. Esta escolha, longe de facilitar a identificação do leitor, como Scott McCloud sugeria no seu célebre Understanding Comics, e muitos críticos gostam de papaguear, parece-me antes instaurar uma distância, um desconforto. A figura de Punpun não é um avatar neutro, mas um incómodo, uma presença que se recusa a ser plenamente humana, e cuja mudez gráfica-verbal acentua a dissolução da sua personalidade. A sua incapacidade de articular a fala humana pode ser vista, talvez, menos como mero artifício estilístico, do que uma burilada metáfora da sua alienação, da sua falência enquanto sujeito. Há, portanto, uma dimensão ontológica perseguida pelo autor, que parece menos interessado em pura e simplesmente “contar-nos uma história sobre um adolescente” do que demonstrar a dificuldade de nos identificarmos (esta noção, na verdade, é muito problemática, do ponto de vista de exactidão teórica, e é abusado por muitos críticos de forma leviana, mas não teremos aqui, como em outros momentos, de a debater) com uma personagem cuja presença não nos permite qualquer grau de familiaridade, mas antes uma estranheza (ou uncanniness, para nos associarmos ao conceito de Freud, o Unheimlich) que nos interpela e nos obriga a repensar as fantasias que poderemos descrever dos nossos passados em formação. (Mais)
A narrativa de Asano, como em outras obras suas (Solanin), recusa a linearidade reconfortante. Aqui, o percurso de crescimento é pontuado por ausências — a do pai, figura que surge apenas como sombra violenta e depois desaparece; a do tio, presença ambígua, entre o mentor e o derrotado; e a das figuras femininas, que oscilam entre o desejo e a incompreensão. A sexualidade, explorada com uma franqueza invulgar – isto é, em Asano não tomba em histronismos ou explorações titilantes, mas sim apenas o desconcertante realismo físico e estranho que ele implica na sua descoberta juvenil –, não é aqui um território de descoberta jubilosa, mas antes um campo de tensão, de confusão, de dor. Em vez de, digamos, “aprender” a amar”, Punpun tropeça no amor, magoa-se, magoa os outros, e nunca parece saber exactamente o que deseja — ou sequer como desejar. Sejamos franco: não foi assim também connosco?
Este Bildungsroman é, portanto, um romance de formação falhada. A geração que Asano retrata não é aquela que encontra o seu lugar no mundo, mas antes aquela que se perde na tentativa de o formular. Há uma sensação de deriva, de perda de coordenadas, que atravessa toda a obra. O futuro não é uma promessa, mas uma ameaça difusa. Os desejos não são motores da acção, mas enigmas irresolúveis. A melancolia não é um estado de alma passageiro, mas a atmosfera constante.
Visualmente, como se sabe, e na esteira de todo um conjunto de autores de banda desenhada japonesa, Asano conjuga o hiperrealismo dos cenários com a estilização extrema das personagens — e, no caso de Punpun, com a sua quase desmaterialização. No contexto desta obra, porém, essa inquietante tensão entre o fundo e a figura reforça a ideia de que o mundo é demasiado concreto, demasiado pesado, para os sujeitos frágeis que o habitam. A cidade, os interiores, os objectos, tudo é desenhado com uma precisão quase fotográfica, enquanto os protagonistas se desfazem, se esbatem, se tornam espectros. Não é propriamente grotesco, mas uma fragilidade radical na formação identitária.
A noção de Bildungsroman implica uma organização temporal e de desenvolvimento mais ou menos linear. O assalto que Asano faz a esse território resulta num labirinto. Continuemos o seu percurso, já que a procissão ainda vai no adro...
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta dos volumes.



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