31 de maio de 2024

Boa noite, Punpun; vol 1. Inio Asano (Devir)

Já se passaram quase 20 anos desde a publicação do primeiro volume desta série, no Japão. A sua tradução para inglês demoraria cerca de 10 anos, mas a recepção foi célere, impactante e significativa em vários países, tornando Asano num nome importante na produção de banda desenhada japonesa contemporânea dirigida a um público mais adulto, a sua recepção crítica e influência, e abrindo caminho a uma maior atenção a outros dos seus títulos. Há quase dez anos, discutiu-se neste espaço A Girl on the Shore, onde assegurávamos ser a voz deste autor a de uma representação da “melancolia urbana e da sufocação emocional da juventude japonesa (ou global)” e falámos brevemente de Punpun (que havíamos lido parcialmente em inglês e francês, mas nunca na totalidade) como um “lentíssimo mas profundo Bildungsroman anticlimático”. Ora, agora finalmente os leitores portugueses poderão atestar a correcção destas palavras, ou sua falha, ao lerem aquela que parece ser ainda, se não a magnus opus, pelo menos a obra de maior impacto mediático do autor. Esperemos que o seu sucesso contínuo, juntamente com outros projectos da mesma editora, com Taiyo Matsumoto, Shiegeru Mizuki, e outros, possa garantir a contínua aposta em outros géneros e tipologias da mangá que não a shonen (campo no qual a excelência é inegável, diga-se de passagem, simplesmente não estará nos nossos interesses pessoais principais). (Mais)


A característica principal, diria, de Asano, é o modo como ele se dedica a criar personagens complexas, com uma psicologia intricada e de difícil interpretação enquanto “tipos” - algo mais, desculpem o pleonasmo, típico em géneros shonen ou shoju. No caso de Boa noite, Punpun temos ainda mais um grau de dificuldade, uma vez que, por um lado, temos uma representação particularmente realista e densa, à la Bildungsroman, acompanhando o protagnista desde uma fase da primeira adolescência (em que abre este volume) até à idade adulta, explorando-se momento a momento, acto a acto, página a página, um certo desenvolvimento emocional. Todavia, por outro lado, Punpun (e a família Punyama) é representada, contra um fundo quase fotorealista e com personagens estilizadas mas realistas, como personagens minimalistamente desenhadas, umas espécies de pássaros mal-esboçados, em total desarranjo do pacto de leitura realista. Mais ainda, a própria personagem nunca se expressa através de falas, pelo menos presentes como balões de fala, mas súbitos comportamentos histriónicos, movimentos exagerados (que ganham maior saliência pelo seu desenho representacional, apesar das constantes metamorfoses, que tão bem demonstram a auto-percepção dos adolescentes a atravessar a puberdade; vejam o trecho do “legume” no Persepolis de Satrapi) ou, no máximo, legendas extra-textuais, num limbo entre o diegético e o não-diegético. Dessa forma, há toda uma dimensão absurda, circense, se não literalmente surreal, presente na série, confundindo esses tais desenvolvimentos emocionais e psicológicos.


Mas afinal, para que servem esses estranhos mecanismos visuais? Será uma espécie de defesa, de desvio? De apaziguamento? Pois Asano explora de forma dura e directa temas como a sexualidade, a violência doméstica, a mistura dessas duas esferas, os desequilíbrios mentais, para depois explorar facetas ainda mais sombrias, ou mesmo reflectir sobre o existencialismo humano. Neste primeiro volume, acompanhamos o titular Punpun num momento de dupla crise: o súbito isolamento familiar, devido à violênia doméstica perpretada pelo pai, que o coloca junto ao tio materno, mas que não é mais que um “loser” pouco aconselhável a cuidar de crianças, e a paixão que nutre pela recém-chegada Aiko, sensação ainda mais complicada pela descoberta pelo jovem rapaz da confusa materialidade da realidade sexual do seu corpo (que é sempre um paradoxal choque e exploração, medo e curiosidade). E, por ser tão sonhador, tímido e fantasioso, tudo isso contribui para uma quase permanente alienação (mais uma vez, aumentada pela estragégia de representação não-realista neste contexto).


Neste aspecto, não estamos longe de uma possível experiência comum entre adolescentes de todo o mundo, ou pelo menos de sociedades afluentes, com acesso a informação, por mais distorcida que seja. Falámos há uns dias, no blog em inglês, das obras de Miguel Vila, e haverá afinidades com a matéria de Asano, e de outros autores. A dimensão patética, abstrusa, e até mesmo grotesca da adolescência está no primeiro plano aqui (o grotesco é uma constante em Punpun, sobretudo em personagens mais velhos e o que passa por figuras de autoridade, como os professores, apresentados como títeres alienados em desarranjos comportamentais inexplicáveis, quer quando felizes quer quando não).


Uma dimensão bem distinta dessa suposta “universalidade”, e importante, parece-nos, é o retrato social, económico e político que o autor cria do Japão. Muitas vezes apresentado como um país de grandes riquezas e um bom nível de felicidade, não é que se soneguem os seus lados menos conseguidos, que existem, mas não é necessário mergulhar em diatribes desconstrutivas. Asano opta antes por demonstrar através das dinâmicas entre os filhos e pais, entre os professores e alunos, entre os colegas, muitas das expectativas sociais goradas e como as pressões dessas mesmas expectativas encontram caminhos menos bons. É curiosa a maneira como se introduzem, por exemplo, mecanismos narrativos que parecem tropos genéricos – a mensagem do assassino da sua própria família numa cassete vídeo – mas para depois revelar realidades ora menos bombásticas mas mais indutivas a crise do que essas mesmas hipotéticas cenas de grande espectacularidade. Para simplificar, não eram espíritos nem oni, mas apenas a pobreza.


Todavia, a dimensão fantasiosa não desaparece de todo, se tivermos em conta a presença de “Deus”, ou pelo menos daquela figura que parece passar por Deus chamada por Punpun com a sua reza especial, ensinada pelo tio (apesar deste depois confessar não acreditar na Sua existência). Esse Deus é uma alucinação? Uma realidade no universo diegético de Punpun, que se corroboraria pelas visões do Deus-Cocó pelo seu colega Shimizu? Apenas uma forma de explicar os mecanismos mentais e emocionais de Punpun no texto? Seria possível pensarmos estar sempre a ver toda a história pela perspectiva do protagonista, mas sabemos que isso não é verdade. Mesmo que não se assuma com a totalidade do mais típico modernismo a polifonia da narrativa, vamos tendo acesso, episodicamente, a perspectivas de várias personagens, menos para construir um “puzzle” centrado do que as impressões de uma vida vivida. E a lição dessas impressões, experiências e perspectivas é terrível. Chega a ser expressada por “Deus”, inclusive (no capítulo 16, que quase poderia ser lido isoladamente, ou de forma especial e não-narrativa, e ainda assim ferir-nos): “Os seres humanos têm dentro de si uma solidão que jamais será enterrada. Se é impossível compreender completamente os outros, não importa o quanto se amem ou se magoem, então, de que forma se devem guiar?” Stig Dagerman não diria menos. O que não se seguiria no escritor sueco é o circo de referências, tão tétrico como hipnotizante, como o da mente de Punpun.


Repare-se que o título original vem de uma expressão claramente dirigida a uma criança, depreendendo-se que se vai deitar e, possivelmente, sonhar. Não atravessámos todos essa fase da vida, em que desejávamos ardentemente que o que sonhávamos (mesmo que acordados) tivesse uma capacidade maior de reescever a vida do que a realidade que se desenvolvia à nossa frente, sem qualquer poder de intervenção da nossa parte? É aí que Asano mete o dedo na ferida, com crueldade mas mestria.


Para já, devagar.... pois em termos do desenvolvimento da personagem, e da entrega emocional do leitor, os próximos volumes vão piorar...

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