Como tem ocorrido tantas vezes em
relação à banda desenhada japonesa, ou sobretudo no que diz respeito à sua
recepção ocidental, Asano é um daqueles autores que numa primeiríssima fase
ganhou proeminência sobretudo nos círculos das scanlations, mas rapidamente conseguiu assegurar um lugar numa
circulação mais oficial e comercial, com traduções em inglês e francês das suas
obras. Ao contrário de duas ou três gerações atrás, não precisamos de esperar
décadas para ter acesso a traduções e edições cuidadas dos importantes autores
contemporâneos desse país (de outros, o esforço continua). Oscilando entre
séries extensas e histórias em volumes isolados, A Girl on the Shore pertence à segunda categoria e vem confirmar o
autor como a voz da sua geração no que diz respeito a uma representação da
melancolia urbana e da sufocação emocional da juventude japonesa (ou global). Algo que, de resto, parece ser uma característica
de alguma literatura japonesa contemporânea, como se o afã daquela sociedade obrigasse
a uma resposta quase apática. (Mais)
A leitura deste livro pode ser
feita em isolamento, naturalmente, mas a sua compreensão num contexto mais
alargado mostra Asano, a um só tempo, a regressar aos seus temas usuais, e a estremar
algumas das dimensões desses temas. De um modo geral, pode-se descrever Asano
como um autor “realista”, ou pelo menos “naturalista”, que quer sublinhar
através da sua abordagem “mangá clássica” – personagens estilizadas, neste
livro menos histriónicas, mais regulares, contra cenários incrivelmente
pormenorizados, num trabalho intenso, senão ímprobo, do encontro entre a
fotografia e a manipulação digital e trabalho de desenho, como se pode
constatar pelo documentário de Urasawa sobre Asano – e um aturado burilar dos
diálogos o mais credíveis possíveis, um mundo que nada tem de extraordinário. Pelo
contrário, aquilo que mais se destaca é a profunda banalidade, ainda que
sombria, da realidade ofertada por estas páginas.
A Girl on the Shore mantém-se totalmente no mundo realista, nem
procurando efeitos de representação surreal (a personagem Punpun, por exemplo, parece
somente um esboço de um pássaro contra desenhos ultra-realistas) nem construções
em que a coincidência tenha um papel preponderante (como ocorre em Solanin e Nijagahara Holograph). O livro centra-se na relação entre os
adolescentes Sato Koume e Isobe Keisuke. Mas não se pode dizer que sejam um casal de
namorados. This is a not a love song,
apetece trautear com os P.I.L. A nubilíssima Koume, como tantas outras
raparigas da sua escola de província, tem uma paixoneta pelo bad boy da vila, Misaki, mas este acaba
por apenas estar interessado em estrear sexualmente o máximo que consegue das
ninfetas que o rodeiam, assim como andar a laurear a pevide. Depreciada, apoucada,
degradada, Koume acaba por encontrar uma espécie de redenção da sua própria sexualidade
e vida ao eleger o rapaz “esquisito” da sua turma, Keisuke, como uma espécie de
sex toy. Igualmente ferido na sua vida familiar (um irmão que se suicidara,
pais ausentes, todas as manias ao seu alcance), Keisuke tem uma atitude de
indiferença para com a escola e o mundo em geral, e a forma como ele próprio inicia
a exploração sexual com Koume acaba por parecer pouco entusiasmada e nada
passional, e simplesmente de abandono. A
Girl on the Shore é o relato dessa descoberta, colocando no centro do palco
as cenas explícitas de sexo dos dois jovens.
Todavia, este não é um livro hentai ou pornográfico (se se exceptuar
o facto, controverso, de ser um livro para adultos sobre sexualidade de menores…
mas também o será Romeu e Julieta). Se
as cenas sexuais são explícitas e “próximas”, não escondendo qualquer dos
pormenores do que os jovens experimentam (com algumas excepções da censura
típica da banda desenhada japonesa em usar espaços em branco para certas partes
anatómicas), o objectivo dessas mesmas cenas não nos parece ser as de titilar o
leitor, a de criar o “frenesim do visível”, como diz L. Williams, isto é, um
afecto que diz respeito ao prazer das personagens e o nosso próprio desejo. Os diálogos
que Koume e Keisuke levam a cabo nesses encontros, cada vez mais intensos em
termos físicos mas sempre emocionalmente distantes, ou quase sempre, pois eles
próprios levantam os obstáculos que permitiriam essa outra proximidade, tornam
esses actos numa espécie de vingança de cada um face ao mundo, e uma curiosidade
mútua quase clínica. “Sexo com amor é uma ilusão”, diz o rapaz. Ele lá
saberá. É nessas dimensões, todavia, que Asano é um autor atento,
uma vez que esses encontros, esse abandono, e essas defesas emocionais sabem a real.
Com efeito, this is not a love song, e nos momentos em que pareceria que se
poderia formar algum tipo de relacionamento mais profundo entre os dois adolescentes,
quer um quer o outro parecem ter o dom de saber o que dizer para magoar o outro
e criar ainda mais distâncias. No fundo, se calhar, até é uma espécie de
romance, mas cujo desfecho é tortuosamente doloroso e até estúpido. Porém, não
é mesmo assim que funciona a adolescência? Ou, não é o amor sempre um acto de
adolescência, onde a lógica e a razão não têm lugar e acabamos por criar antes
mecanismos para magoarmos o outro que mais desejamos?
Gostaríamos de recuperar algumas
das considerações a propósito e This One
Summer/Finalmente o Verão, uma
vez que também A Girl on the Shore elege
um Verão (abarcando o fim de um ano lectivo e o início do seguinte) como o seu
palco territorial, confundindo assim uma divisão “natural” do calendário
societal numa unidade de descoberta psicológica e física, emocional e sexual
das suas personagens. Dessa feita, a história não apenas segue os dois jovens, mas
antes todos os grupos em que eles se integram, sobretudo o escolar, permitindo
ao autor assim estudar ao mesmo tempo as dinâmicas locais e culturais destas
personagens, criando ecos da relação de Koume e Keisuke noutras relações,
criando tensões familiares, comentários sobre a cultura e sociedade japonesas,
redes intertextuais mais ou menos perceptíveis, sobretudo com a geração de
Tatsumi…
Como dissemos atrás, o desenho de
Asano, no que diz respeito à figuração humana, é estilizado, mas ele possui uma
capacidade de atentar às mínimas alterações de um rosto (reforçado pelas
estratégias de composição dos planos visuais, das sequências, etc.) para ser
capaz de expressar emoções não-ditas, subtis e que afectam as inferências dos
leitores face aos acontecimentos e atitude das personagens. O mesmo poderia ser
dito do uso das paisagens, de vinhetas “sem acção”, enfim, daquilo que McCloud
chamou de “transições de ambiente a ambiente” e que o próprio sublinhava serem
usadas com maior incidência na mangá.
De uma página para outra, o autor pode colocar construções dinâmicas,
palavrosas, intensas, ao lado de um olhar panorâmico e silencioso sobre
paisagens desabitadas e de largos horizontes. Como autores que sabem tirar
partido de todas essas especificidades expressivas e estruturais, a “história”
não é apenas composta por eventos e palavras, mas esses ritmos entre todos os
elementos. Aliás, a leitura distraída dos diálogos poderá dar a sensação de que
se tratam das trocas mais inconsequentes possíveis, que apenas se mantêm na
superfície. Quando Keisuke se aproxima finalmente de uma espécie de “confissão”
emocional da sua atitude perante o suicídio do irmão, volta atrás para
despachar o tema com uma qualquer piada idiota. Deve-se, portanto, ler nas
entrelinhas para compreender o que as personagens desejariam antes dizer, mas o
que dizem nelas é na verdade um angustiante silêncio impotente.
Nota final: agradecimentos a G.
Martins, pelo empréstimo do seu volume, e à editora,pela oferta do livro; ainda, a M. D., por nos ter colocado na senda dos documentários de Urasawa.
Sem comentários:
Enviar um comentário