23 de julho de 2016

Tudo isto é fado! Nuno Saraiva (Sol/EGEAC/Museu do Fado)

É bem possível que, anos no futuro, olhemos para trás e vejamos o papel de Nuno Saraiva como que ocupando um papel fundamental numa certa imagem de Lisboa. Uma das grandes desvantagens de existir apenas uma certa atenção crítica ou massificada para com banda desenhada existente em livros é colocar na sombra outro tipo de produções, como por exemplo a banda desenhada em jornal, a qual, não sendo de facto mais uma das colunas vertebrais desta disciplina artística, como o foi entre os séculos XIX e XX, não deixa de ter aqui e ali alguma presença. E no caso de Saraiva, uma presença de uma importância extrema. Afinal de contas, a sua produção tem atravessado décadas quase ininterruptas de uma média de duas páginas publicadas por semana em vários semanários, do Independente ao Expresso, e inclusive o Sol, de onde saem estas páginas reunidas em volume. E se algumas séries primitivas associadas aos jornais foram sendo reunidas em livro (Filosofia de Ponta, Arnaldo o pós-cataléptico, A Guarda Abília), muitas outras nunca encontraram esse poiso físico mais definitivo, e quase seguramente mais por responsabilidade do próprio autor, mais preocupado com a produção do passo seguinte, do que esse balanço e congelamento da forma através da colecção livresca (restava o blog Na terra como no céu). (Mais) 

Com efeito, é necessário compreender a produção de Nuno Saraiva de um ponto de vista de “séries” ou “ciclos”, e mais temáticos que narrativos. Com a excepção do trabalho elaborado com Júlio Pinto, ou algumas outras colaborações em projectos de livros (como foi o caso do livro dedicado ao Guadiana Encantado), a esmagadora maioria do trabalho deste autor tem seguido núcleos temáticos e uma (quase sempre) fórmula estrutural. Esses núcleos têm rondando questões literárias, figuras da história, temas sociais e políticos du jour, sempre com os ingredientes principais do autor – uma certa ironia blasé e uma carga forte de erotismo -, e acima de tudo com um intuito principal, ou pelo menos um resultado coerente: uma visão sobre a personalidade ambivalente, mutável, entre o desenxabido e desenmerdado, dos portugueses. Acresce a essa contínua pesquisa e resposta aos temas hodiernos a prática que o autor tem tido junto à representação oficial da cidade de Lisboa, graças aos esforços conjuntos entre a EGEAC e o atelier Silva!, que lhe tem garantido espaço para criar as imagens das Festas da Cidade, entre outros projectos que elegem as suas imagens como a “assinatura” gráfica de Lisboa para essas ocasiões. Mais ainda, a própria actividade associativa do autor junto à Mouraria com a Renovar Mouraria (desdobrando-se nos projectos do jornal bairrista Rosa Maria, de murais, acções recreativas e até mesmo a emergência de uma espécie de mascote com a “Rosa”, aliás protagonista da tira “A vida em Rosa” do jornal citado), é apenas mais um ingrediente para reforçar esse papel. Enfim, muitos factores concorrem para quase pensar em Nuno Saraiva como o artista oficial de Lisboa. 

Tudo isto é fado! apenas reforça esse papel, confirmando a um só tempo um percurso e uma técnica, ainda que expondo algumas das fragilidades dessa exposição contínua também. Em relação ao percurso, isso deve-se ao fado surgir como uma linguagem artística, musical, performática, íntima e indelevelmente associada aos bairros populares de Lisboa, criando um movimento centrípeto dessas referências, ajudando a que se espelhem umas às outras. Isto é, Saraiva confirmando ser o fado uma canção de Lisboa, a canção de Lisboa sublinhando o papel do artista de quem a declara como tal.

Quanto à técnica, referimo-nos à fórmula estrutural aventada acima: todas as histórias são curtas, de duas páginas, com uma primeira vinheta ou secção ocupada pelo título e mostrando autonomia entre si. No caso de Fado, as histórias têm quatro páginas, e apesar de um par de personagens recorrentes, por assim dizer, essas histórias não estão encaixadas umas nas outras numa estrutura narrativa maior. São quase tão-somente “peças” que vão contribuindo para o tema central. Mas parece ter sido pensado logo à partida com vista a um livro

A história do fado é complexa e atravessou várias fases, cada qual informada, como não pode deixar de ser, pelas correntes das transformações políticas, sociais e culturais de um Portugal que apenas a custo entrou na modernidade e depois na democracia. Não pode é haver dúvidas de que, para mal ou para bem, goste-se ou não, o fado conquistou aquilo que Rui Vieira Nery chamou de uma “legitimidade político-ideológica e a dignidade estética”, que até já tem direito de cidadania, senão exigido, em encontros de motards. Mas o autor não está interessado nem em construir uma narrativa coesa de princípios pedagógicos nem tampouco erigir um mundo fechado e coerente em que pudesse surgir uma espécie de “espírito” da vida de fadista, mesmo que mítica. Eventualmente, poder-se-ia pensar num projecto como Rebetiko, de David Prudhomme, como um contraponto. O livro do autor francês centra-se na vida de um tocador de bouzouki, instrumento central da canção grega de influência turca rebetiko, populada no seu início pelos “mangas”, uma população de trabalhadores pobres, dados à bebida e ao haxixe, às paixões de uma noite e jogos de faca. Muito idêntico a um certo imaginário de “mânfios” de Alfama ou do Bairro Alto em torno do fado enquanto canção de putas e marinheiros. Tal como o rebetiko, os blues, o pansori coreano e outras linguagens musicais pelo mundo fora, também o fado poderá ter tido uma origem extremamente popular e mesclada com o “multiculturalismo” das cidades portuárias (se bem que as relações que se estabelecem com o lundum ou até com as cardjas seja hoje visto menos como sustentado musicologicamente do que pelas tentativas de criar raízes identitárias ora míticas, ora antigas ora transnacionais, conforme a ideologia), mas seja como for, seria profundamente transformado no aproveitamento contemporâneo pelas suas características identitárias e homogeneizantes. Afinal, o fado não é mais a canção de Lisboa, mas um património mundial, o que vem reforçar a canga e pátina comercial, segura e explorável dessa expressão.

O livro de Prudhomme demorava um dia na vida desse músico boémio, permitindo que a partir desse filtro entendêssemos não apenas a prática artística, mas o papel sócio-cultural daquela canção num período muito particular. Nuno Saraiva está menos interessado num filtro dessa natureza, do que procurar beber mais livremente de toda a história e elementos para criar trechos soltos que possam contribuir para o entendimento desse tal património. Todavia, não podemos deixar de sentir que é precisamente por todas essas escolhas – formais, de estratégia temática, de dispersão narrativa –que Tudo isto é fado!, como o próprio título parece confessar, não se quer nem concentrar nem comprometer. Como se costuma dizer, dá uma no cravo e outra na ferradura, prestando atenção a figuras mais localizadas e míticas, como a de Fernando Maurício, à “embaixatriz” Amália, confirma os mitos em torno de Marceneiro e dá espaço igualmente à mitificação de Mariza ou de Camané. Mostrando momentos das suas humildes origens no bas-fond da cidade e visitando Las Vegas, para o Grammy dado a Carlos do Carmo. Sublinhando anedotas conhecidas e apócrifas, que alimentam os mitos necessários, e visitando experiências de encontros transdisciplinares em torno da canção. E, de modo repetido, mostrando imagens em postal de Lisboa, de locais e objectos e pessoas icónicas que alimentam todo esse “bicho”, inclusive introduzindo homenagens e desvios muito sui generis.

Contudo, como dizíamos, há uma sensação de evitarem-se certos contornos que poderiam ter-se tornado em elementos mais fortalecedores deste projecto. Por exemplo, uma das histórias no livro elenca os poetas a quem se foram buscar as palavras para habitar o fado, de Camões a Júlio Pomar, de Ary a Natália Correia. Teria sido curioso ter explorado a controvérsia que Amália teceu quando, com o seu Cantigas numa língua antiga, rompeu com um tradicionalismo que se pensava que ela defenderia. Hoje talvez seja difícil vê-la como iconoclasta, mas foi precisamente isso o que ocorreu. Carlos do Carmo pode parecer uma figura hoje consensual, mas a faceta de chanteur ou crooner de fado (mais do que “fadista” propriamente dito) teve os seus obstáculos. A complexa relação entre o regime de Salazar e a canção que entretanto, contra o gosto pessoal do ditador, mas perfeito instrumento de propaganda, se tornou a “canção nacional” é apenas tocada ao de leve. E quando alguma informação surge de atacado, como a catadupa de nomenclaturas de tipos de fado, não de forma explicada, contextualizada ou suficientemente diferenciadora, enfraquece o propósito, a nosso ver. Pois afinal, qual é o papel deste volume? Uma nova apreciação do fado? Uma sua re-apresentação? Uma celebração da sua história e variedade? Uma reflexão sobre o seu papel junto a uma nova geração, que tanto abraça a contemporaneidade pós-global como o reforçar de identidades nacionais? Ou simplesmente uma colecção de pequenas peças soltas e desirmanadas, unidas pelo tema?

Não é por acaso de que uma das últimas histórias do livro, “Os desenhadores”, é simultaneamente uma assinatura, uma “confissão de arte” e, ainda, uma forma de Nuno Saraiva se integrar numa tradição que ele assinala para nela melhor se posicionar. A “tradução” do fado em imagens passa pelos tatuadores do século XIX sob as notas plangentes da grande Severa, e a elas juntam-se a tela de Malhoa, as caricaturas de Bordalo, os desenhos à vista de Stuart, os “Ecos” de Carlos Botelho e os cartazes de Almada. Para coroar essa procissão de nomes maiores, e com toda a correcção e merecimento, Saraiva mostra-se a si mesmo a pintar o famoso mural colectivo nas Escadinhas de São Cristóvão, à Mouraria. Escreve o autor: “Moral da história: Ao fado tudo se pinta”. Uma turista tira uma foto (em telemóvel) ao mural, dizendo “Uau! Very typical!”. Realmente, “típico” não é, mas constitui-se de imediato como tal, uma vez que se vem entrosar de modo perfeito a esse tal encontro entre a contemporaneidade do turismo global (tuk-tuks, bares de gin e hispterismo) e a afirmação identitária “milenar” e exclusiva. Estamos bem longe de desconstruções dessa “tipi-cidade”, e num contributo a essa imagem algo difusa.

A integração de Saraiva nesse “mural da história” é, porém, extremamente acertado e correcto, sendo ele um, se não o, novo autor dessas imagens que se irão acumulando num futuro já projectado de imagens oficiais. E nós somos, é nosso privilégio mas igualmente responsabilidade, testemunhas contemporâneas.

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