2 de maio de 2024

Gato Comum. Joana Estrela (Planeta Tangerina)

Incorrendo no perigo da repetição, voltamos à carga com um problema contemporâneo da oferta da banda desenhada, quase global, mas definitivamente em Portugal. Na voragem de provarmos que a “banda desenhada não é só para crianças”, a viragem para a sua dita “maturação” implicou uma drástica transformação da oferta, esforços editoriais, recepção mediática e discussão para toda uma produção de banda desenhada que excluía, precisamente, as crianças. Mesmo que haja oferta, há pouca discussão (veja-se o silêncio generalizado sobre as obras de Raina Telgemeier, ou a recepção “chocha” e deslocada dos livros de temática YA ou lgbt-friendly, quase sempre pautadas por ligeiros vislumbres de posicionamentos heteronormativos e tutelares). Mesmo os festivais “dispensam” essas dimensões. Por isso, acaba por ser um travo distinto quando nos deparamos com gestos dedicados a textos mais abrangentes em termos de públicos etários mais jovens e, sobretudo, quando feito com uma qualidade significativa, e sem concessões. Pouco surpreende, portanto, que seja a Planeta Tangerina, cooperativa de uma mão-cheia de autores que têm pugnado por uma transformação profunda na seriedade com que levam as relações entre texto e imagem em livros para a infância e juventude, que nos chega um novo livro de Joana Estrela.



A novela centra-se num pequeno gato, de 17 anos, doente, que se chama Manel. Ele será a âncora, o centro, o eixo, em torno do qual vamos desembrulhando toda a história familiar e as considerações da narradora, Cristina, também de 17 anos. Ele, um ancião cuja vida parece estar a chegar ao fim, ela uma jovem que está a despertar para uma nova fase da vida, talvez mesmo, “a” vida, do ponto de vista de uma adolescente. Afinal de contas, a vida inteira do Manel foi igualmente “toda” a vida da Cristina. Os pequenos episódios, as frases trocadas, os pensamentos mostrados, parecem ser comuns e banais. Mas escondem sob essa capa de simplicidade a profundeza do que se está a discutir. A temporalidade. A mortalidade. A individualidade. E as regras. Ou por outras palavras, as relações ontológicas entre as pessoas (e por “pessoa” incluo os animais, ponto apropriado em Gato comum).




Em rigor, sendo da colecção “Dois passos e um salto”, o livro dirige-se a leitores mais velhos – pelo menos, repare-se, autónomos em relação à leitura, que se encontrem numa idade em que as suas questões de identidade e autonomia se tornam centrais nas suas relações familiares e sociais, com todas as crises, ou fortunas, que isso implica. Foi aqui que tinha sido publicado Pardalita, da autora, com uma temática mais pressurosa, e Aqui é um bom lugar, “diário gráfico” estrondoso que criara com Ana Pessoa, assim como o monumental Finalmente o Verão, das Tamaki, entre outros livros importantes numa pequena biblioteca para esta faixa etária. Se insistimos nestas questões de produção, deve-se ao facto de que este livro é o fruto do curso de mestrado da autora, o que a irmana com outros projectos que temos visto surgir, no seio de estudos académicos, enquanto projectos, como é o caso de Néon, de Rita Alfaiate, fruto do doutoramento.


Eventualmente, haverá a tentativa de vender o livro como algo lamechas para “leitores que têm gatos”, apelando a sentimentos patéticos em torno das relações pessoais que fulano ou cicrano possa ter com os seus tarecos. Tudo bem. É uma estratégia comercial como outra qualquer. E é verdade que quem apanhou gatos nas silvas, resgatou do lixo ou de gatis, os deixou cirandar pela casa, alterou as rotinas pelas rotinas deles, os vê crescer, envelhecer, adoecer e morrer, acompanhar nos últimos momentos na veterinária, os enterrou e depois é assaltado pela sua memória, encontrarão todos esses pontos aqui explorados. Mas que não se leia este livro como um gesto simplista dessa realidade. Não se pretende fulanizar. Joana Estrela, desde Propaganda, tem demonstrado um interesse forte em empregar instrumentos gráficos de eficácia minimalista para questões de fundo, e Gato comum não é excepção. A questão é entender como a textura das nossas vidas se adopta a formas ora mais plenas ora mais vazias conforme as relações que estabelecemos com outros (daí o “comum”, “comunidade”), e como essas entradas e saídas alteram a nossa percepção: dos espaços, do tempo e até de nós mesmos.


O livro é publicado com folhas amarelas, com a excepção de uma espécie de interlúdio, externo à história central, mas que a enquadra e comenta tematicamente. Sempre a linha preta, com algumas aguadas pontualmente aplicadas, há um efeito de conjunto, tranquilo, homogéneo, que une toda a tessitura dos acontecimentos. Estrela tira partido de todo um conjunto de estratégias de composição, nem sempre utilizando a esquadria mais típica da banda desenhada, mas deixando uma vinheta isolada flutuando na página, ou dispensando de divisões, explorando spreads como cenários alongados, insistindo em pequenos ciclos de repetição de planos para focarmo-nos nas pequenas variações, ou criando cenas de diálogos alongados e espraiados ao longo de uma página (quase à la B. M. Bendis, mas de forma menos intensa e invasiva). Esta variedade contribui menos para a procura de uma manutenção de um tom estilístico do que sublinhar as várias urgências, tempos e emoções que se vão demonstrando.



E Joana Estrela cumpre isto com uma linguagem apuradíssima, como sempre. Um spread mostra o gato, depois de ter estado letárgico todo o dia, levantar-se para cumprimentar o pai que chega a casa. “Ele sempre foi o preferido”, reza a legenda. Na página à direita, vemos as três canecas da família, duas decoradas, como convém, com gatos e um rato, a do pai declarando-o “o melhor do mundo”. Mais clara que esta comunicação visual é impossível. É isto o que se chama storytelling visual.

Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.


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