26 de maio de 2024

Corto Maltese. A Rainha da Babilónia. Martin Quenehen e Bastien Vivès (Arte de autor)

Este segundo volume do duo de autores empregando à sua maneira a famosa personagem de Hugo Pratt dá continuidade ao contexto do início do século XXI. Os dois já haviam trabalhado juntos em Quatorze juillet, uma espécie de narrativa de alta octanagem e radiografia de uma França contemporânea pós-Macron, atenta, se não paranóica, com o facto de se ser alvo de actos de terrorismo, aparentemente internacional mas cozinhados no interior do país. Controverso, difícil, necessário, e com os desvios necessários para se tornar um thriller. Talvez tenham sido esses ingredientes claramente presentes que convenceram a detentora dos direitos a não apenas dar continuidade à personagem após a morte do criador original como a lançarem uma série “alternativa”. (Mais) 


Não foram poucos os leitores, e críticos, a notar que a estratégia da Cong SA e Casterman, com esta série, está na mesma linha do que tem acontecido na Dupuis com O Spirou de..., e cuja fórmula rapidamente seria tomada em relação a outras personagens, de Lucky Luke a Valérian, os Estrumpfes e até os Mickeys francófonos. É uma estratégia comercial como outra qualquer. Nesse sentido, se Juan Diaz Canales e Rúben Pellejero deram continuidade à série “oficial” (como aconteceu com o próprio Spirou, e Blake & Mortimer, Lucky Luke, Astérix, etc.), Quenehen e Vivès condensaram alguns dos elementos originais mas reformularam para novos contextos. Os elementos incluem, desde logo, o sentido de aventura, literal, de deslocações no espaço associadas a missões específicas – em Oceano Negro vai do Japão ao Equador, em Rainha da Babilónia inicia-se na amada Veneza de Pratt e continua pela Croácia, Turquia para acabar algures no Iraque. Outro elemento são as mulheres, vistas sempre como objecto de desejo mas ora inalcançável, ora impossível, ora mesmo trágico, pelo marinheiro errante; mais, aliado à consabida dimensão erótica desabrida de Vivès, as mulheres até agora encaixam-se na perfeição numa certa “tipologia” repetente dos seus livros. A objectificação e fantasia continua, ainda que novas roupagens, ou falta delas. Mas quem na minha geração não fantasmou, que atire a primeira Paulette.




As diferenças são de contextualização. Não mais são as aventuras de um marinheiro de Malta, de mãe cigana e pai britânico, vogando pelos sete mares nas décadas de 1910 e 20, e que terá mesmo combatido na Guerra Civil espanhola, mas antes um pirata contemporâneo, a soldo de quem o chamar, conhecedor das novas águas internacionais e os outros tipos de “tubarões” que as infestam, e capaz de as navegar em ziguezague para missões nem sempre do lado limpo da legalidade. Todavia, sempre com um sentido de honra, respeito pela dignidade humana e uma justiça profunda para além do que está escrito preto no branco. Este Corto é tão romântico, impulsivo, imprevidente quanto o original. Mal os seus gestos devem ser sempre épicos, quer falhando quer vencendo, e é possível que apenas um sentido estranho de lealdade se mantenha (como é sinal pelas personagens que voltam a aparecer neste segundo volume, do primeiro). Nesse sentido, portanto, não estará longe da personalidade original do que foi idealizada por Pratt, surgida em 1967.


Um Ulisses moderno (mas não pós-moderno, as obras de Quenehen e Vivès inscrevem-se perfeitamente na crença ainda das “Grandes Narrativas”), Corto ora enfrenta monstros ora se deixa seduzir pelas várias Circes com que se cruza, e sempre com a ideia clássica de um “tesouro” no fim do percurso. Isso não é distinto em A Rainha da Babilónia. Os monstros aqui são criminosos, guerrilheiros, militares, agentes da CIA, que estão sempre em linhas bem abstrusas e cinzentíssimas de moralidade. As Circes são Semira e Freya, que protagonizara Oceano Negro, mas também Gina, de certa forma. Em ambos os livros, Corto perdes os sentidos. Em ambos, é, num momento ou outro, nutrido de regresso ao vigor por minorias locais, culturalmente distintas da identidade nacional no poder. Em ambos, visita o que podemos chamar, não tanto de cemitérios, mas lugares de mortos – a capela das ossadas de Inca Garcilaso de la Vega em Córdova em Oceano Negro, um sepulcro babilónico neste volume. Aliás neste segundo, chega mesmo a “sepultar-se” num sarcófago, da qual é depois salvo, não sem ter perdido um dedo, sem perder o anel... Se não há aqui uma procura pelos autores de toda uma série de factores simbólicos (catábase, ressurreição e metamorfose da personagem, “casamento alquímico”, etc.), então que será?


Começando em Veneza, em torno de histórias antigas da Guerra da Bósnia e traficantes, Corto vê-se empurrado para um enleio cada vez maior, quer em termos geográficos (atravessa o Adriático para ser acolhido por uma família cigana da ex-Jugoslávia, atravessa a fronteira para a Turquia, e é depois levado para o Iraque de avião, presume-se) quer de “tempos”. Se em Oceano Negro, se lançavam pistas para um tesouro inca, aqui regressamos mesmo ao berço da civilização. E sendo no momento imediato ao Pós-11 de Setembro, mas antes da Guerra de 2003, acompanhamos algumas incursões militarizantes, ou da CIA, no Iraque. Tal como no livro anterior, há uma estrutura parecida, começando com um “golpe”, que também corre mal no sentido de haver um morto, ou mais, que Corto jamais deseja. É uma forma de apropriação pela parte dos autores. O escritor insistindo numa re-inscrição da personagem num thriller internacional que joga com as forças obscuras que movem toda uma economia paralela e de influências mútuas de poder político, e o artista mergulhando na escola do alto-contraste pelo caminho do desenho célere, que o pincel digital permite, e o jogo com três tons (branco, preto e cinzentos em três gradientes) corrobora, como uma espécie de teatro de sombras em que nada é definitivamente uma coisa ou o seu contrário, mas a ambivalência e a incompletude reinam.




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