7 de maio de 2024

Três publicações. André Coelho (ΧΘΩΝ)

Na sua prolífera produção de projectos de banda desenhada, de ilustração e musicais, André Coelho cria como que metástases desses mesmos gestos e que, com a sua alquimia e ciência (difícil de destrinçar uma da outra), expugna, mantém vivas e cultiva para que se desenvolvam em novos organismos autónomos, mas que transportam a mesma contaminação. Se bem que uma grande parte do público dedique maior atenção a objectos maiores do ponto de vista comercial, genérico e de circulação capitalista - “novelas gráficas” e “álbuns” -, seguirmos os pequenos passos expressivos levam à manutenção dos modos como um artista vai pesquisando, burilando, interrogando, esses tais gestos contínuos. 

Estas três publicações saíram, desde final de 2023 até há recente, pelo próprio selo do artista, ΧΘΩΝ, ou “Khthon”, que lhe serve de plataforma de auto-edição editorial e musical, sendo neste último caso acessíveis via Bandcamp as produções que mesclam música electrónica, noise, soundwalks, colagem, found footage, ambientes negros, criando paisagens sonoras muito próximas, precisamente, do que o autor tenta capturar através dos seus desenhos e colaborações: um retrato das ruínas do futuro que fazem sentir a sua sombra já hoje. (Mais) 



Katabasis é revista, no sentido original de révue, de pequenas dimensões, mas que acreditamos ser uma espécie de “wet dream” para Coelho. E se existisse uma revista de entrevistas a músicos, pequenas peças literárias de autores, ensaios de pensadores, colecção de desenhos, que colocasse de lado totalmente quaisquer concessões para com os tops comerciais ou os géneros policiados e se dedicasse ao território que o próprio autor-editor admira, segue e cultiva? Bom, o condicional dissipa-se precisamente pela existência desta publicação, com entrevistas a Junkyard Shaman, Murmer, e Blunt Instrument, a.k.a. André Lemos, entre outras peças. Uma rede de afinidades que ganha corpo em papel. Nas sonoridades, na imagética, na prática, na posição cultural e política, na construção de afinidades criativas. As quais não se expressam através de aspectos categorizáveis facilmente, como em estilos, géneros, “tribos”, ou até territórios, mas por algo que subjaz a isso tudo e vibra um fio de cabelo sob a consciência.


O próprio título, que apresenta uma simbologia forte em relação a uma “descida” a uma espécie de mundo subterrâneo mas do qual se recuperam lições profundas, apresenta desde logo todo o seu programa. Aliás, poderíamos aliar isso à explicação do nome grego do selo, que remete à raiz etimológica do adjectivo “ctónico”, isto é, associando-se à noção de “terra” num sentido mais telúrico, pré-Olímpico, e não tanto do planeta, da vida diurna e da vigília, comandada por ontologias de clareza.




A primeira publicação foi, na verdade, On Disaster, co-criado com o escritor Manuel João Neto, na esteira do trabalho que haviam cumprido há dez anos com TerminalTower, exactamente o mesmo período em que um novo exercício seria publicado na antologia Postapokalyps, revisto para esta versão. Neste brevíssimo caderno de 24 páginas, uma espécie de comic book de bolso, os autores voltam a revisitar uma espécie de “fundo literário” (Blanchot e Ballard são directamente citados, o primeiro patente no título) para auscultar como que o basso continuo dos crimes da violência exercida em toda a sociedade pautada pelo que se chama de “disaster capitalism”. Citando-se a técnica do cut-up (de Burroughs e Gysin), não apenas se expressa esse embate somente na matéria textual, mas igualmente visual. Apesar de podermos compreender uma espécie de narrativa visual, com um percurso psicogeográfico por paisagens de destruição e desolação pós-industriais e de guerra, as vinhetas apresentam desenhos filtrados como que por arrastamentos de fotocopiadora (à la Tamburini), manipulações digitais, distorções de tramas, e o conhecido estilo de Coelho nas suas imagens negras, poeirentas, pulvorosas, ruidosas, sujas. De resto, o autor também contribuíra com duas “histórias” (?) para Katabasis, distintas entre si (uma de paisagens urbanas, outra de paisagens montanhosas naturais), mas que partilham esta ideia de “passeio apocalíptico” (muito menos celebratório do que o recém-lido AEstrada, de Larcenet, que mantém o foco na “sobrevivência da nostalgia”).




O mais recente título é Rusted Gantries, trabalho a solo do artista, com mais páginas num formato oblongo mas ainda de bolso. A solo, é como quem diz, pois o autor trabalhou, ao longo de uma década, toda uma série de esboços para histórias, ilustrações soltas, desenhos avulsos, etc., a partir de uma antologia de contos de ficção científica de J.G. Ballard, Memories of the Space Age, escritos ao longo de 20 anos, mas unidos por temas comuns que se poderiam entender como “a crise da exploração espacial”. Com efeito, o ponto de partida estrutural, as primeiras páginas e o título nascem do conto “Dead Astronauts” (que também daria origem a uma das mais belas action figures de Ashley Wood, by the by) que colocam o ónus nas “ruínas do futuro”. Escrito em 1968, o mesmo ano em que a Nasa colocou astronautas na Lua, ou seja, na cúspide da sua glória, Ballard vislumbrava já o mesmo estado desolado, abandonado e vítima dos mais distintos predadores como as antigas pirâmides egípicas, rodeadas de deuses mortos.




De certa forma, são essas as pesquisas que alimentam a lavra de André Coelho, com todas as suas interrogações – gráficas, musicais, outras – que exploram não as incessantes promessas gloriosas do capitalismo, sempre pedindo só mais um sacrifício em nome da recompensa ao virar da esquina temporal, mas as ruínas que já se espalham há muito e que deveríamos atentar para delas escapar. O autor, assim, lança mão de todos os elementos – na verdade, uma selecção parcial de toda essa prática – para construir o que, a uma primeira vista, parece ser uma narrativa visualmente mais convencional. Mas é óbvio que a natureza fragmentária do seu trabalho, e a ambivalência sequencial, apenas criam uma abertura de causalidades temáticas e simbólicas. Como o autor explica numa breve nota no fim do volume, “The main strenght of the Ballardian narratives lie not in their plot, but in their imagery”. E assim surge este torvelinho de imagens, ou, nas palavras ainda do próprio André Coelho, um “delírio” ou “caleidoscópio”, no qual nos é exigido mergulhar.




Nota final: com a excepção da foto das três publicações juntas, todas as imagens gentilmente cedidas pelo artista.

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