1 de maio de 2024

A Estrada. Manu Larcenet (Ala dos Livros)

Muitas vezes, e já o repetimos bastas vezes, a consideração das adaptações atém-se meramente ao verter da fabula, por oposição à sjuzhet, na terminologia formalista, para um novo meio, isto é, tão-somente os “acontecimentos”, que muitas vezes também se chamam “estória”, e não as estratégias discursivas, formais, e poéticas do meio original. Isso leva àquele exercício curioso de contrastar ponto por ponto “o que acontece” no texto original com o que surge no novo texto, colocando todas as outras possíveis dimensões completamente de lado. E, as mais das vezes, leva a discussões passionais (não sem mérito próprio, diga-se) sobre a questão da “fidelidade” em relação ao texto original (sigo aqui, como em tantas ocasiões, Jan Baetens). Vejam-se os exemplos consabidos do Dune de Frank Herbert/David Lynch ou The Shining de Stephen King/Stanley Kubrick, no cinema, ou À la recherche du temps perdu de Marcel Proust/Stéphane Heuet na banda desenhada. Devemos ter sempre em conta as possibilidades de pesquisa específica de um determinado meio, nas suas capacidades materiais, expressivas e estéticas, que possam atingir a criação autónoma. E, por vezes, pode haver um tal grau de autonomia que se fundam textos quase-totalmente independentes do ponto de partida, como no caso do nosso território o exemplo superior de Le Chatêau, de Olivier Deprez (après Kafka). Todavia, e dependendo dos contextos, a fidelidade não tem necessariamente de ser vista como um “problema”, “obstáculo” ou “impedimento” a essa mesma criatividade, como não poderíamos deixar de acreditar, tendo em conta o trabalho criativo em curso na colecção da Levoir dos Clássicos da Literatura Portuguesa em Banda Desenhada, e outros trabalhos menores.

Essa é uma questão fundamental quando nos surge à leitura a adaptação do famoso romance de Cormac McCarthy, The Road, à banda desenhada, por Manu Larcenet, que de resto já nos havia presenteado com a adaptação de Le rapport de Brodeck, de Philippe Claudel (também editado entre nós pela mesma editora). O romance está disponível em língua portuguesa pela sempre excelente Relógio d'Água. De certa forma, sentimos aqui um mesmo gesto, um mesmo ar de familiaridade em relação às obras escolhidas, mas que, a nosso ver, tem aqui n'A Estrada um cumprimento mais estreito, mais convencional, que o Relatório. O mesmo livro do escritor norte-americano havia sido adaptado ao cinema, em 2009, por John Hillcoat (realizador dos memoráveis The Proposition e Lawless), mas colocaremos totalmente de lado esse outro “texto” nesta nossa abordagem do álbum de banda desenhada.


A razão de falarmos de um maior grau de convencionalidade é que A Estrada, apesar das capacidades de filigrana linguística de McCarthy, apresenta-se numa estrutura suficientemente organizada, concentrada no par pai-filho numa road trip por um cenário desolador, e, mais, parte do programa emocional do livro centra-se na tensão desconcertante dos perigos pelos quais atravessam, particularmente impactantes em pessoas que possam compreender o medo visceral da perda de um filho para uma violência quase segura, e sempre iminente. O Relatório apresentava-se como um livro mais texturado, cheio de níveis hipodiegéticos e de representação distintos, mais divisões episódicas, enquanto que A Estrada tem uma vertente mais linear (mas não necessariamente mais célere, como veremos).


 Portanto, ficamos surpreendidos por ler aqui e ali leitores alegando a “dificuldade” ou mesmo “impossibilidade” das adaptações de uma coisa a outra. Aliás, coloquemos uma questão inicial aqui, para dissipar de vez a questão da “fidelidade”. Sempre que alguém disser que lhes é difícil imaginar adaptar x ou y, referindo-se a obras que, no fundo, contêm uma clara intriga narrativa (isto é, uma estrutura lógica, um sentido de continuidade, uma possível organização linear espacial e temporal; repetimos, by Jove, este romance é uma road trip!), apesar de tudo (“tudo”, isto é, os jogos de linguagem e/ou literatura), perguntem-se o que sucederia se tivessem de enfrentar escritores como Thomas Bernhard ou William T. Vollman ou Maria Gabriela Llansol... Mas, enfim, isto é como se acreditássemos que as “adaptações” (cinematográficas, sobretudo, mas outras quaisquer) fossem necessariamente uma validação, ou pior, confirmação cultural de um texto literário (ou outro, como da própria banda desenhada), o que levaria a outra conversa.


Há uma diferença fundamental entre as capacidades de burilar a linguagem literária – que pode ser minimalista ou lírica, abandonar-se à geometria complexa da subordinação ou manter um ritmo simples de parataxes, beber de um vocabulário diverso do corrente ou ater-se a um conjunto circunscrito, etc. - e as capacidades da banda desenhada lançar mão de vários outros mecanismos, visuais e compositivos, cromáticos e de coordenação, etc. Cormac McCarthy era um autor conhecido por empregar, à vez, distintas abordagens à linguagem (do que conheço, Blood Meridian é ainda um favorito pelo seu liricismo seco e austero), e o mesmo poderia ser dito de Larcenet, que tanto nos providenciou com bandas desenhadas com estilos límpidos e de legibilidade descomplicada (a sua fase Fluide Glacial, por assim dizer) e outras em que a expressividade atingiu um grau de paroxismo significativo (Blast, ainda, para nós, o seu livro superno).


O desastre no centro do mundo narrativo d'A Estrada não é jamais revelado. Larcenet transforma as descrições literárias, claro está, em vinhetas soltas, silenciosas, de pequenos aspectos dessa paisagem desolada: troncos queimados, carros retorcidos, prédios esvaziados, botas abandonadas, caixas de ferramentas vasculhadas, esqueletos e cadáveres pontuando o caminho e pó flutuando por todo o lado. Também os protagonistas, sem nome (para nós; pois entre si sabem como se chamam), parecem empregar esse “silêncio” como factor de aumento da arquetipificação das suas figuras, algo que enleia McCarthy e Claudel, aspecto que já havíamos sublinhado a propósito da adaptação do artista francês em relação a Relatório. Mas o grau de enfabulação de Claudel é maior do que o de McCarthy, o qual ainda assim mantém traços suficientes de culturação contextual.


O livro de Larcenet nasce de volutas de tramas, linhas contornadas e cruzadas “esculpindo” as nuvens gordas de fumo. Não compreenderemos formas concretas nessas linhas, mas podemos olhar para elas em busca de um qualquer sentido. Como se o livro nascesse de uma gravura oitocentista a preto-e-branco. Em 4 vinhetas, vai-se revelando mais espaço em branco, presumindo-se o céu, antes de se introduzirem as personagens, os cenários e a trama, que será espraiada em quase 150 pranchas, empregando-se aqui e ali uma segunda cor, que mesmo atravessando amarelos, vermelhos, laranjas e verdes, são sempre pouco luminosos e intensos, com uma única excepção. E, no fim, que surge? Uma imensa splash page com uma nuvem singular, ocupando quase todo o plano visível (com uma nesga de céu branco visível), como se não apenas regressássemos à cena inicial, como também fôssemos engolidos decididamente pelo fogo que tudo consome.


Ou haverá espaço à esperança? Como os leitores sabem, existem indícios terríveis em relação à fortuna do jovem garoto. As pessoas que o resgatam, o homem armado na banda desenhada, responde de forma clara que não se dedicam ao canibalismo. É um teste de confiança. No filme, temos pistas visuais mais decididas e “explicadas” (o cão, a presença de toda a família). No livro, é mais lacónico, mas não sem indícios. Na banda desenhada, aumenta-se ainda mais a incerteza, pela presença tão-somente do homem, ainda que nos diga que a sua família os espera. No romance, o último parágrafo fala dos “padrões vermiculares” dos musgos, que poderiam ser “mapas do mundo no seu devir”, e não nos podemos esquecer que existe um narrador omnisciente que bem poderia ser entendido como sendo a voz de uma das personagens, mas de modo indicidível. A única personagem que se poderia recordar dos ribeiros, salmões e musgos seria o pai. Mas está morto. Ou poderia, eventualmente, ser o garoto, num período temporal posterior a toda a sua “aventura”? Já com conhecimento do passado que não experienciou, mas iluminado pelo futuro que se pode adivinhar de recuperação? E como é que essa esperança – naturalmente, esta poderá ser tão-somente uma ilusão desesperada deste leitor em querer um “final feliz” - é traduzida por Larcenet? Pela tal nesga de branco da página, que poderá ser vista como um pequeno espaço de resistência e que, quiçá, aponta à possibilidade de reconquista...


A excepção a que aludimos acima, a propósito das cores, é a lata de refrigerante que o pai encontra no supermercado. Mas onde no romance (e filme) é uma lata de Coca-Cola, no livro de Larcenet é uma fictícia “Soda Cola”. Mudança possivelmente instigada por questões de direitos de autor sobre a marca famosa, o objecto mantém-se na mesma como sinal de todo um conjunto ideológico de elementos culturais que se dissipam na intriga: a última lata de uma bebida banal na nossa sociedade de consumo torna-se um ponto nevrálgico da lição principal que o pai insiste junto ao filho: “não te esqueças”, “saboreia o momento”, “carpe diem”, misturando de forma complexa, e irónica, tanto uma questão fundamental da ontologia humana com a eficácia de um slogan capitalista. As cores mais vivas que esse objecto assume (e outros, da mesma estirpe) faz parte dos pequeníssimos episódios de “diversões” (em ambos os sentidos da palavra) que o pai executa, tal como descer uma ribanceira pendurados no carrinho de compras, o banho frio nas águas, a partilha da bebida achocolatada, mas que diminuem drasticamente à medida da marcha, como convém a um arco narrativo cada vez mais lúgubre e desesperançoso. Esta é a grande prova, no fundo, a que as personagens se votam. De um modo pendular, pai e filho são sempre uma espécie de contrabalanço dos erros do outro, erros de juízo, de reacção, de decisão imponderada. Se o pai ensina o filho, este não intervém de menos para a manutenção moral do pai.


O livro, como indicámos, está cheio de momentos silenciosos, por vezes mesmo páginas inteiras, e que empregam composições não-ortogonais ou sem a costumeira charneira branca entre vinhetas, convidando assim os leitores a procurarem uma velocidade própria na leitura. Já o dissemos em outras ocasiões, e não estamos sozinhos nesta apreciação, que a banda desenhada tem esta paradoxal capacidade de, em livros onde há diálogos e matéria verbal, quando surgem vinhetas sem texto, estas acabam por inferir um tempo mais lento, inclusive de leitura, do que aquele que se verificará em vinhetas com texto (usualmente reduzindo-se à velocidade da própria leitura textual e pouco mais). Isso significa que a leitura de A Estrada não pode ser apressada. Bem pelo contrário. Repare-se na página 92. Há, pelo menos, duas noites aí passadas. E se existem acções repetidas – a travessia de paisagens urbanas, um banho, a tosse do pai, a verificação da arma –, cada uma delas estabelece uma relação com as outras ali que faz com que exerçam uma força maior. A arma é um peso e uma segurança. A tosse é um sinal de descida. O cesto de basquetebol um sinal de perdição. É nestes momentos que Larcenet mostra a sua capacidade de pensar atentamente na aliança entre todos os elementos específicos da banda desenhada: composição, enquadramento, luminosidade e cor, distância das personagens, proliferação de linhas versus silhuetas, etc.


E há outras estratégia em que o autor traz à banda desenhada elos de significado (pouco importa se previstos ou não na obra literária “original”) que lhe são específicos, como na pequena oração de agradecimento pela comida que o rapaz faz, no abrigo de sobrevivência que ocupam por uns tempos, partindo da sala, escapando da casa, atravessando a cidade e terminando numa grua onde se encontram pessoas enforcadas. As palavras do miúdo - “esperamos que estejam sãos e salvos, no céu.../ … com Deus” - diriam respeito a esses mortos, demonstrando a natureza esperançosa do primeiro, e a realidade crudelíssima dos segundos. Uma sobreposição possível somente num meio em que as “faixas” verbal e imagética podem criar tensões contraditórias. Também quase no final, a página 133 vem confirmar a “morte do mar” que as palavras do pai tinham feito adivinhar quando se descobriu a ausência da cor azul nas águas infindas.


Larcenet não abandona a possibilidade do humor, as mais das vezes, macabro. Sobretudo quando mostra os troféus dos canibais, com cabeças humanas, em vários estados de deterioração, empilhadas e arranjadas, e engalanadas com resquícios da cultura popular, criando como que um futuro Rascar Capac. Mas também é capaz de homenagens inesperadas e tocantes, como a cópia do livro Enfances, de Sempé, no abrigo encontrado por pai e filho. Todavia, esses clins d'oeil podem também “distrair” do processo de imersão narrativa...


Voltando às questões colocadas no início, a pergunta a fazer, simples, é: cria-se aqui uma utilização interessante e estimulante da linguagem da banda desenhada ou não? Ainda que não esteja presente a liberdade selvática de Blast e a eficácia despojada de Relatório, não há quaisquer dúvidas de que Larcenet é um cultor magistral desta disciplina artística.

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