21 de setembro de 2005
Sleeper. Ed Brubaker & Sean Phillips (Wildstorm)
Um dos temas que penso ser claro interessar-me no estudo geral da banda desenhada é a teoria dos géneros. Não é a primeira vez que o digo. Por vezes, os géneros existem para ajudar, outras tantas são um obstáculo à leitura de dado livro. Outras ainda, são os próprios autores que partem do interior dos géneros para poder brincar com eles.
Ed Brubaker começou a sua carreira como autor “completo” de banda desenhada alternativa, dentro das linhas costumeiras de uma certa autobiografia urbano-depressiva, se bem que alguns dos seus trabalhos antigos ainda hoje mereçam atenção, como, por exemplo, Lowlife (há uma antologia). Mas o seu crescimento rapidamente entrou pela colaboração com colegas fora do mainstream, com um soberbo policial, The Fall com Jason Lutes (de Jar of Fools e Berlin, City of Stones), e depois aproximar-se do mainstream mais enraizado (DC Comics) mas paulatinamente e sempre com a linha do policial: Scene of the Crime, com Michael Lark and Sean Phillips, alguns títulos relativos a Batman, etc. Mais recentemente, tomou conta de um “arco” (nome que se dá a uma história mais ou menos una dentro de um título serial que não tem, em princípio, fim editorial) da equipa de super-heróis “pós-políticos” The Authority, mantendo a qualidade das expectativas criadas pelo criador original, Ellis, e agora trabalha para a Marvel com um tal de Capitão América.
Sleeper foi uma série que durou dois anos, o que em calendarização comercial de comics dá dois volumes de 12 comics cada. Trata-se da história de um agente, Holden Carver, infiltrado, duplo, que aos poucos perde a confiança nos princípios que regem a sua missão, descortinando a idêntica duplicidade dos seus “patrões”, das suas “presas”, e vai-se tornando um agente triplo, quádruplo, múltiplo, até se decidir a trabalhar somente para si. É também interessante testemunhar como Brubaker inverte a típica solução de terminar um conto do fantástico com um “afinal era só um sonho e então acordei”, com a acção contrária: a recompensa final de um sleeper (agente infiltrado para acções futuras) é afinal um sono, que se aventa eterno (mas, como o amor em Vinicius de Moraes, nos universos dos super-heróis nada é para sempre ou só é para sempre por agora).
A série trabalha dentro dos limites de uma expectativa comercial, logo, não se esperem surpresas de maior em termos gráficos, formais, ou mesmo de exploração na construção das personagens. No entanto, na continuidade do seu Point Blank, Brubaker faz convergir a escrita e o ambiente do policial no universo dos super-heróis. Claro, nada de novo a Oeste. Essa é precisamente a premissa de anos e anos de Batman, da passagem de Frank Miller pelo Daredevil, de séries mais recentes como as autoradas por Brian Michael Bendis (sobretudo Powers), e todas elas devedoras do triunvirato americano de Dashiell Hammett, Raymond Chandler e Rex Stout.
Ainda assim, Brubaker apresenta alguma mestria em preparar os seus episódios. É curioso que esta é precisamente uma série onde é clara a discrepância em ler cada um dos comics de mês a mês a ler tudo de uma assentada (que é o que fiz, apesar de ter sido em comics emprestados)… Pergunto-me se a estratégia seguida seria a mesma se Brubaker pudesse ter escrito isto como – utilizando essa termo vazio - graphic novel. A narração externa é sempre feita pelo próprio Carver, com as “caixas” de texto em formato de folhas arrancadas a um diário, começando num ponto do tempo a partir do qual se recua até retornar a esse mesmo ponto e depois avançar. A fórmula é repetida, mas jamais se torna maçadora. Os dois anos correspondem a dois “arcos” e a duas peripécias, engalanadas com as suas reviravoltas, suspenses, surpresas, e desenlaces. As piscadelas de olho a outros autores são subtis, mas não obscuras, as piadas internas ao universo em que se inscreve também, e mesmo quando se estiva pelos pressupostos desses mesmos universos (alienígenas), as coisas são feitas de modo pouco histérico e rapidamente “lógicos” nos encaixes narrativos. O nome de Carver talvez seja, talvez não, uma homenagem ao escritor Raymond Carver, conhecido poeta e novelista da classe trabalhadora norte-americana. E o agente Holden parece de facto começar como um bom “escuteiro-mirim”, cheio de boa vontade e amor pela Justiça e Liberdade (à la “Cap A”) mas que tropeça nos verdadeiros propósitos dos publicitários desses ideais e nos cordelinhos que o comandavam ocultamente… Nesse aspecto, é como que um Comediante (dos Watchmen) que desperta “por fora”. O inglês de Brubaker não é propriamente difícil, mas voga confortavelmente em vários níveis, esposando-os de uma forma feliz, e permite um ritmo da linguagem muito credível – se bem que longe do “realismo fodassse”, para citar Mário Moura. As interrelações das personagens, por mais estranhas que elas nos pareçam se descritas de fora – um homem que se chama “Genocídio”, uma mulher que só não é frígida se matar alguém, um “Organismo Aumentado Tacticamente” – acabam por se tornar bastante humanas e até ternurentas, mostrando belos momentos da amizade entre dois homens, mesmo quando despacham com as próprias mãos uma vintena de agentes da F.B.I. ou como os namoros são sempre uma dor de cabeça, mesmo com a colega assassina de todas as missões…
A arte de Sean Phillips é contida, convencional, as cores ora pálidas ora escuras, mas perfeita para a apresentação de uma história sobre “covert missions” nos espaços intersticiais das sociedades e políticas humanas.
Nota: agradecimentos a Gonçalo Freitas por me ter emprestado toda a série. Em comics! Sim, existem ainda pessoas normais.Existem neste momento 4 trade paperbacks a coleccionar toda a série.
Ups!. AAVV ((Aquilo Teatro)
A Ups! é um fanzine que está prestes a lançar o seu terceiro número. O primeiro é de 2001, o segundo mais recente. Apoiado em termos financeiros pelo Aquilo Teatro, da Guarda, vai surgindo quer pelas razões da produção quer pela “vontade explícita” dos editores e mentores do projecto, a saber, João Louro e Brígida Ribeiro (cuja regularidade é mais intermitente em termos de edição, parece-me). São ambos os primeiros números quadrados, a preto e branco, o primeiro com uma capa a três cores, o segundo com uma qualidade de papel e reprodução superior, já ara não falar de uma série de objectos inclusos que aumenta o interesse objectual da coisa: um índice móvel, uma indexação de acordo com símbolos químicos, inserts ilustrados, uma pauta para “peça para piano – estudo nº 13” de Élia Fernandes.
Não posso dizer que em termos temáticos ou de participantes estamos perante alguma novidade de maior. Não obstante a participação de ilustres (ambos números) como Isabel Carvalho, André Lemos, Rafael Gouveia e Filipe Abranches, estes não apresentam aqui os seus melhores trabalhos, são quase até auto-epigonias que aqui obtiveram espaço de exposição. Dos menos famosos, mas não por isso desmerecedores da nossa atenção, focaria o próprio João Louro, sobretudo com umas ilustrações acompanhadas de texto de criaturas fantásticas reminiscentes de Viagens de Ijon Tichy, de Stanislas Lem.
O segundo número é mais bem acabado em termos de escolha, penso, já que o primeiro reúne colagens, experiências gráficas por computador e tipográficas, e poemas urbano-depressivos apalhaçados sem grande consequência. Essa mesma lista de modos de trabalho repete-se no segundo número, mas com maior esforço, visivelmente. Por exemplo, as duas pranchas de Maria Lino são belíssimos exercícios de manchas e rostos humanos, que poderão a alguns lembrar Baudoin nas suas flâneries eróticas, umas miniaturas de Bruno del Touro típicas de um certo design urbano contemporâneo (de ilustrações, moda, brinquedos japoneses).
Tudo isto ainda se faz acompanhar de textos, prosa, poesia, objectos literários não identificados, um curto texto sobre crítica (António Godinho). A esmagadora maioria não me levanta surpresas de maior, passando por todo um universo que já tem 20 anos, de uma literatura neo-simbolista, anti-cultura, independente, underground, chamem-lhe o que quiserem, mas cujo culto não é diminuto. No entanto, os textos de Galo Porno – irmão gémeo de Rafael Dionísio no primeiro número, leitor de Ramos Rosa no segundo – parecem-me ser de alguém que desenvolver-se-á seguramente noutros patamares de exposição.
Mas como me escreveu o João Louro, estas disparidades não são mais do que naturais, porque “como um Ups!, acontece e pronto!” Nem mais.
Se estiverem interessados, poderão contactar o Aquilo Teatro, através do 271 222 499 ou aquilo-teatro@sapo.pt, ao cuidado de João Louro e Brígida Ribeiro.
1 de setembro de 2005
The Comics go to Hell. Fredrik Strömberg (Fantagraphics)
Segundo volume de um ciclo de pequenos livros profusamente ilustrados, uma espécie de guia, ou melhor, para utilizar a expressão do autor, “enciclopédia visual”, este é dedicado ao Diabo. Esta personagem de quase todos os contextos da existência humana, e que atravessa tantos avatares e facetas, tempos, geografias e culturas e crenças, não podia deixar de ser abordado pela banda desenhada, e como seria de esperar, das mais variadas formas, desde as mais iluminadoras às mais ridículas, das mais divertidas às mais chãs.
Strömberg é um escritor e especialista de banda desenhada sueco, mas este livro (tal como o anterior sobre a figura dos negros e o próximo sobre os judeus, o que une a todos como um estudo da figura do “outro” na cultura popular) é escrito em inglês. Esse inglês é escorreito, bem escrito e de fácil leitura, aparte alguns erros ortográficos e uma certa repetição frásica nalguns pontos. Esse inglês nunca me parece fruto de ter escrito o livro numa língua que não a dele, mas antes uma genuína preocupação em ser claro nas suas ideias.
O livro é basicamente uma recolha de algumas das representações do Diabo, ou de temas imediatamente relacionados com ele, organizadas em capítulos muito bem pensados. Face à sua escolha dessas representações, é sempre tentador a pulsão de acrescentar mais um ou dois exemplos que julgamos em falta, mas perante o trabalho feito, suficientemente alargado a um vasto espectro de produção, que atravessa variadíssimos temas, épocas, géneros, locais, propósitos (sem bem que haja uma inevitável inclinação para um ou dois pólos “centrais”), uma pesquisa que não só é inteligente mas divertida, e muito bem estruturada, esses eventuais acrescentos seriam algo altaneiros... A menos que houvesse esse convite directo.
É um livro bem informado, culto, informativo de forma impecável e de fácil consulta. Estando perante um assunto de uma extrema complexidade, há um pendor natural para a simplificação das questões, mas nunca o autor se torna simplista, e pode este até ser um excelente ponto de partida cujas pistas se podem seguir pela bibliografia apresentada, a quem o assunto interessar. Não há, portanto, pesos excessivos de erudição ou instrumentalização desse saber. Mas aí é que reside o hausto que poderia tornar esta numa obra mas acabada. Uma vez que não se trata de um trabalho académico, de análise profunda – aliás, o próprio autor confessa estarmos perante de uma pesquisa pop -, há uma certa falta de profundidade nos textos que acompanham os exempla. Uma análise circunstancial de um uso particular do demónio poderia relevar ilações bem mais interessantes. Num dos passos do Journal 4, de Fabrice Neaud, um amigo do autor discorre durante umas páginas sobre a ideia teológica e teleológica que subjaz à obra de John Byrne no famoso episódio do Julgamento de Reed Richards (ou Mr. Fantastic)... Essa análise é fascinante, e não há nenhum momento na obra de Strömberg que chegue a esse nível de discussão ou frutos. Não obstante, esta é precisamente uma obra que poderá representar um ponto de partida a essas discussões mais profundas. The Comics go to Hell é também um livrito com um design simpático, que o elege como excelente objecto de “mesa de café” (como dizem os americanos, “coffee table book”, ainda que seja para os modernos cafés apertadinhos, pelo tamanho do volume). Apresentando-nos as 1001 caras do Anjo Caído nesta bela arte que tanto prezamos, e atravessando quase todos os azimutes da sua este torna-se um compêndio interessante, quer para os analistas ou meros fãs curiosos, e até os satanistas de Domingo.
Modern Arf. Craig Yoe (Fantagraphics)
Já falei de outras antologias aqui e noutros sítios, por isso dispenso-me de tecer comentários sobre antologias em geral. Gostaria de dizer que esta Modern Arf, que é por demais visível ser a teima de uma só pessoa – o seu editor Craig Yoe – marca a diferença, que levanta a fasquia, mas tenho demasiadas desconfianças a trabalhar para o fazer sem pestanejar.
Não me entendam mal. Esta publicação é clara nos seus princípios. Cada número será dedicado a um tema em particular (neste caso trata-se da relação entre os artistas e os modelos) mas sempre relacionando a “arte” da banda desenhada e as “artes” visuais. Apresentará sempre trabalhos de banda desenhada inéditos, ou reedições, sejam estas de trabalhos históricos, difíceis de encontrar, já esquecidos, ou mais recentes mas sob uma óptica diferente e exemplos de “artes maiores” (sobretudo pintura). Gostei muito de Milt Gross, deste Jack Kirby, de desvendar Patrick McDonnell, de descobrir este trecho de Dali, de me ser apresentado Hy Mayer, de se me tornar acessível estas pranchas de Antonio Rubino. Outras escolhas entusiasmam-me menos.
Mas a desconfiança que mencionei não se relaciona com a escolha em si. Trata-se antes da sua contextualização, apresentação, problematização que é... nula. Craig Yoe parece-me mais um excêntrico com dinheiro e uma vasta colecção privada mas sem uma verdadeira formação de gosto ampla para fazer um trabalho interessante. A antologia sofre demasiado de um design sui generis, mas que se torna pesado, pretensioso e até de mau gosto (em “americano”, diríamos “loud”). Pertence também àquela geração que adora comics porque são... cool. E que colecciona objectos “americana pop”, falando com desprezo de outros patamares mais ou menos instituídos de produção de cultura, divulgação e criação artísticas e mesmo de juízos de gosto, relativizando com “I know what I like”. Nem vou recomeçar essa discussão.
A verdade é que o cotejamento directo de vários exemplos de cartoons, gags, curtas histórias e obras de arte em que apenas existem traços superficiais comuns em nada abonam a nenhum pensamento crítico, tampouco às artes que supostamente se estão elogiando. Surge apenas como uma saladinha “clever”, um “achado” interessante, para mostrar aos amigos no meio de um ou dois cocktails...
Os textos que introduzem os trabalhos não são mais do que encómios informados, mas adiantarão pouco a uma redescoberta balizada dos trabalhos apresentados. Usam e abusam de adjectivos como “brilhante” e “genial” (para todos os artistas incluídos, afectando assim o trabalho do próprio Yoe que se inclui na sua antologia – uns horrorosos pastiches de meia-dúzia de famosíssimos artistas desta arte), e empregam quase sempre a palavra “surreal” para se referirem a trabalhos cuja plasticidade ultrapassa a dos modelos do mundo. Eis aqui uma outra discussão possível: a não existência de surrealismo na banda desenhada pela sua própria materialidade e obrigatoriedade de estratégia visual, repetição de referências em geral obrigatória pela sequencialidade, etc., mas isto levar-nos-ia a outras discussões em termos de montagem, paginação, desenhos, experiências-limite da banda desenhada (ou outras linguagens mais ou menos análogas), relações mundo-desenho isto é, referencialidade/realidade), entre outras linhas temáticas inevitáveis. Também nõ é o momento certo. Pensando agora nisso, se esta antologia permitir estabelecer um princípio para estas discussões, a sua estratégia manca não é de todo desprezível.
Outlaws, Rebels, Freethinkers & Pirates. Bob Levin (Fantagraphics)
Este livro colige textos que, de uma forma ou outra, Bob Levin criara para The Comics Journal ou que foi escrevendo enquanto preparava artigos. Podem ser vistos, julgo, como ensaios, no verdadeiro sentido da palavra. Isto é, o autor não parte de nenhum pressuposto em particular teórico, académico ou outro, para escrever antes com alguma liberdade sobre alguns dos autores de que mais gosta, encontrando neles porém alguns aspectos comuns; mais, o livro não segue nenhuma organização crono-lógica mas obtém uma coesão final. Os aspectos comuns dos autores e obras focadas - muito díspares entre si, algumas mais antigas como o Barnaby de Crockett Johnson, outras bem mais recentes, como o trabalho de Harvey Pekar, Ben Katchor ou Chester Brown - e essa coesão estão visivelmente resumidos e apresentados no próprio título (e a epígrafe escolhida): uma mão-cheia de libertários que permitem e instituem cada vez mais amplas liberdades na criação (e consequente publicação) da banda desenhada. Mas há algo que ocorre de uma grande importância, e que me permito a comparar. Ao passo que David Carrier, no seu livro The Aesthetics of Comics (Penn State UP), partia de uma série de ideias preconcebidas e uma grande capacidade para name-dropping e cruzamento de referências para acabar por não conseguir levar avante o que prometera, isto é, um tratamento mais sério da banda desenhada, Levin fá-lo com uma subtileza e uma agradável e pessoalíssima linguagem. O primeiro capítulo marca o tom do que se segue, um tom de intimidade com o material estudado, uma intimidade emocional, profunda e, sobretudo, livre. Levin não se apresenta como historiador nem como crítico, mas simplesmente como “um escritor cujos temas mais recorrentes ultimamente têm sido a banda desenhada e os seus autores”. Seja. Isso não significa que seja menos iluminador por isso, e até o consegue ser de uma forma crítica.
O livro tem um tom muito, muito pessoal, misturando histórias passadas pelo próprio, com os seus, ou os encontros (e desencontros) que teve com os artistas. Várias personagens aparecem recorrentemente como pequenos deus ex machina para aconselhar o autor, personagens tão estranhos que só podem ser reais (Dr. Filth, Dr. Ruth Delhi). Passa por descrições dos ambientes circundantes dos intervenientes, dos espaços de trabalho ou lazer dos artistas entrevistados, da sua descrição física, de atitude, revelando facetas importantes talvez para o desvelar de um entendimento mais cabal da cultura em que se pode inserir a obra. Como sabem, faço uma distinção entre factos biográficos e a obra do artista, não obstante as passagens directas que possam existir, sobretudo no que diz respeito a trabalhos ditos “de autor”, mais pessoais, até mesmo biográficos. Essa distinção é necessária, a meu ver, para uma completude possível e um equilíbrio salutar da crítica. Mas se o objectivo for mais amplo, se pretender abarcar aspectos históricos, sociológicos, ambientais, então este tipo de curiosidades torna-se operativo de facto.
A linguagem é descomplexada, hedónica ao se entregar a metáforas e aproximações inesperadas (um concerto dos The Rolling Stones e Our Cancer Year de Pekar, Brabner e Stack), e muitas vezes directamente descritiva do trabalho dos artistas, mas para rapidamente fazer um breve, quase invisível comentário sobre as consequências que esse trabalho exerce sobre o leitor (em primeiro lugar, o próprio Levin), que ilumina o porquê dessa escolha. Aliás, falando em escolhas, um outro termo de comparação é eventualmente a série de entrevistas que se encontram em Dangerous Drawings (editado por Andrea Juno, da famosa ReSearch: Juno Books 1997), totalmente dedicada às artes do desenho (com grande peso para a banda desenhada, apesar de ter com este livro apenas um autor comum, Chester Brown). Há uma mesma busca por artistas que, neste meio, procuram através de um fazer político empurrar os limites (push the envelope) desse mesmo meio.
No entanto, há alguns outros problemas que preferiríamos abordar. Para podermos ser o mais concreto possíveis, concentremo-nos em dois ou três capítulos, os quais versam os artistas com cuja obra estou mais familiarizado: Chester Brown, Harvey Pekar e Ben Katchor.
Cada texto tem as suas próprias valências como não poderia deixar de ser. Uma vez que o todo não é controlado por um qualquer programa ou lista de princípios de análise, um dos ensaios poderá discutir a arte do autor em questão detalhadamente (Ben Katchor) ou apenas se centrar nas estratégias da narrativa ou da escrita, secundarizando o trabalho gráfico (Pekar et al.). Este não é um aspecto censurável, uma vez que Levin procura satisfazer diferentes tipos de leitura com cada um dos autores visados, e não, como disse, respeitar uma programatização qualquer com todos eles.
Mas muitas das considerações são bem mais abrangentes e podem fazer desvios pelo cinema e pela literatura – uma breve comparação entre a estratégia de um Chester Brown com um Philip Roth estabelece de imediato o frutífero que pode ser o balanço informado de dois modos distintos de criar uma narrativa e, em última instância, de fazer arte. E não se diga que essas comparações não são possíveis, pois se por um lado qualquer comparação é, por estrutura, falhada, por outro só depois de conhecer os dois termos de comparação é que se entenderá como e até onde ela é exequível.
Há alguns outros aspectos que mereceriam uma discussão mais continuada e explorada. Mantenhamo-nos no capítulo dedicado a Chester Brown. Será que de facto a autobiografia não pode ser senão uma primeira plataforma para outros voos autorais? Desconhecimento de “a minutes’ thought”? Bom, Fabrice Neaud e o seu Journal seria de imediato um exemplo que destruiria essa limitação. Mais, se bem que as comparações entre modos de expressão diferentes possam revelar linhas de força significativas, outras provam precisamente o contrário e levam antes a dificuldades do pensamento. E, a meu ver, e passados alguns anos, ainda vejo I Never Liked You e The Playboy como as obras mais acabadas de Brown, ao passo que Ed The Happy Clown, por mais divertidos que tenham sido na sua primeira leitura, não ressurgem com a mesma força agora, e o tempo que separa essa leitura não me faz ver coesão num todo, mas antes as suturas desse patchwork de géneros. Divertido, sim, mas também modal; ou seja, que apenas funcionam numa determinada circunstância e não noutra.
Outro capítulo que mereceria uma discussão mais alargada é o que, partindo de Lichtenstein, recai nas perguntas de sempre: o que é Arte? Qual o valor da Arte? Que comparações são possíveis entre modos diferentes? Bom, o autor faz uma breve e abreviada história que culmina no acto de Duchamp, cuja redução serve o propósito de entrar de imediato no assunto principal: porque é que um quadro de Lichtenstein pode valer tanto dinheiro ao passo que os comic books donde os painéis foram “copiados” nada valem? O problema é que não existe uma resposta fácil, passível de resposta num texto curto. É antes uma construção social complexíssima que atravessa séculos de diferenças – afinal, o próprio conceito de Arte na Grécia Antiga, no Renascimento e na Modernidade NÃO é aproximável, não obstante a disciplina-que-arruma História de Arte, e é algo que oscila entre o que Rainer Rochlitz vê como “subvenção e subversão”, ou outros como “morte da arte” e (nova) “atitude estética”, entre muitos outros pares possíveis. Depois há o problema de comparar NOMES do concreto tomando-os como o TODO do MODO. Afinal, a banda desenhada não é sempre o mesmo: os comic books dos anos 30, 40 e 50 norte-americanos (com os seus géneros mais repetidos da aventura, super-heróis, ficção científica, pulp, policiais, etc.) não é o mesmo que a banda desenhada do fim do século XIX na Europa (em Portugal, a obra de Bordalo Pinheiro era adulta, activamente política), nem o underground norte-americano dos anos 60 (sexo, drogas e blues) pode ser visto como paralelo do crescimento das potencialidades deste modo em França/Europa (desde Masse a Moebius, Crepax a Tardi, exemplos & etc.). A Arte, entendida assim num grande geral, é fruto de todo um jogo de poderes (Bordieu e tantos outros dixit), no qual influi tanto o económico como o cultural, o político como o mais puramente aleatório... E é-me sempre difícil entender onde levará a comparação – nominal, já que raramente é explorada em todas as suas implicações, nichos de problemas e plissagens conceptuais - entre a obra de Barks e a de Proust, a de Moore e a de Welles, a de Sfar com a de Picasso, a de Jack Katz com o seu First Kingdom e Homero!! (e os termos de comparação das ditas “Grandes Artes” rondam sempre uma família recorrente)... Pois jamais surgirá alguém a dizer que “Citizen Kane é a Mona Lisa do cinema” ou que “A La Recherche é a Capela Sistina da literatura”. São modos diferentes de expressão, instrumentos muito díspares de visão/construção do mundo, e apenas linhas de convergência actuais é que se tocam, não o seu todo. Por isso, é tão certo dizer que NÃO EXISTE nenhuma obra de banda desenhada capaz de estar ao mesmo nível que a Gioconda, tal como NÃO EXISTE nenhuma obra das “grandes artes” capaz de se cotejar com o Little Nemo de McKay, o Krazy Kat de Herriman, o Conte Demoniaque de Aristophane, ou The Cage de Vaughn-James. E esses NÃO deve-se ao simples, mas inolvidável facto que estão sobre tabuleiros diferentes. Tabuleiros económico-sociais, dirão uns, tabuleiros político-culturais, dirão outros. Sim. Mas tabuleiros filosóficos e estruturais diferentes também. A felicidade estará em descobrir obras que desafiem esses abismos existentes.
Levin tenta discutir as coisas noutros termos. Descobrindo as linhas de força de cada artista em questão, os termos que cada um deles procura responder com o seu trabalho, as relações específicas e irrepetíveis que determinada obra estabelece com a cultura ou o(s) meio(s) em que se insere. Seja como for, não se entenda que os temas debatidos o são feitos com displicência, negligência, ou sem ponderação. Bem pelo contrário. A linguagem aparentemente casual encerra decisões de pensamento significativas. Simplesmente preferiria, quanto a mim, uma maior exposição dessas mesmas consequências do pensamento. O único senão é o próprio livro enquanto objecto: o design e a paginação não são nada felizes, com notas de rodapé fora das páginas correspondentes, separadores entre capítulos em desnecessários brancos, e ainda, mas esta situação seguramente um imperativo económico (organização? copyright?), a concentração das imagens ao centro do livro, com um máximo de dois exemplos para cada autor/obra, o que impede, para quem desconhece(r) o que se cita – como é o meu caso para dois ou três autores -, um entendimento ou ilustração mais desafogada.
Top 10: The Forty-Niners. Alan Moore & Gene Ha (America's Best Comics)
Um espírito criativo e que tenha o imprescindível espaço e apoio que o permita expressar-se mais ou menos livremente, sobretudo atingindo um merecedor grupo receptor, chega a um ponto tal que apenas se lhe apresenta duas opções possíveis e antagónicas: ou a proximidade ao génio (que, por natureza, só pode ser natural, e por isso aqui é apenas próximo) ou o esgotamento. Ou o seu permanente exercício e cultivação lhe permite uma também constante aprendizagem e experimentação que apenas reverterá a favor da sua própria prosperidade, ou então está-se perante o normal desgaste que o tempo impõe sobre tudo o que há na Terra.
Estou seguro que se dissesse que Alan Moore é um dos grandes nomes da banda desenhada (sem ter o cuidado de colocar à frente adjectivos como “anglo-americana”, “contemporânea”, “de género dos superheróis”, “comercial”, relativizando a espectacularidade do absoluto), um génio, o maior, etc., que não seriam muitos os leitores a contestar essa mesma adjectivação. Isso porque, como já aqui o disse, o culto dos autores (de super- ou infraheróis) não é mais do que uma excrescência do próprio culto dos heróis. Mas não o posso de modo algum dizer; nunca fui adepto de plebiscitos. Alan Moore é um autor cuja obra longa e diversa marcou definitivamente um nicho significativo, mais ou menos largo conforme o que desejarmos discutir, da banda desenhada. Sem dúvida. Alan Moore é autor de alguns dos livros ou séries que ultrapassam as sinecuras em que a banda desenhada sempre se parece transformar quando discutida por fãs, mas são poucos os títulos que de facto atingem aqueles patamares de uma obra a que se poderá dar o nome de “universal”... Apontarei, apenas, V for Vendetta, From Hell, sem pestanejar, mas aponto The Killing Joke, curta pérola de estruturação narrativa, o mistério inacabado Big Numbers, e ainda o por completar Lost Girls. É também responsável por pequenas mas inusitadas experiências de criatividade, que passam pela banda desenhada, mas que nela não se ficam, como The Birth Caul e Snakes and Ladders. Noutro patamar, foi responsável também por um fôlego diferente no velho, cansado e previsível género dos super-heróis, com muitas pequenas contribuições, umas mais leves, outras mais possantes, outras ainda exercícios interessantes de mesclas de género, mas não por isso sem interesse, e cita-se Miracleman, Swamp Thing, Watchmen, 1963, The League of Extraordinary Gentlemen, Promethea... Mas também é culpado de ter embarcado na repetição de fórmulas e contínuas “revisitações” a um certo imaginário dos super-heróis, numa mistura de nostalgia e gozo total, mas que não parecem trazer nenhuma mais-valia à linguagem, à criatividade, etc., e acabam por ser avaliadas somente por serem fruto de “Alan Moore, o Deus da bd” ou outros epítetos, mais ou menos divinizantes. As suas contribuições para Spawn, WildC.A.T.S., Supreme, e as suas séries Tom Strong, Tomorrow Stories, etc.
Por isso, é sempre com desconfiança quando se cria alguma expectativa em torno de Alan Moore, pois Moore não é, apesar da egrégia idade e capacidade em realizar as suas criações, infalível. Aguardo com expectativa o volume que apresentará, na íntegra, o trabalho Lost Girls, com Melinda Gebbie (sua mulher, e com quem já trabalhou antes). Releio, com um prazer sem nome, V for Vendetta e, sem fôlego, From Hell. Mas a atenção que acabo por dar aos títulos saídos na ABC é dada sempre com um sorriso torcido no rosto...
The Forty-Niners é uma narrativa que nasce da sua série Top Ten, uma espécie de “Balada de Hill Street” e “Justice League of America”, como já foi dito por alguém. E trata do passado – o ano de 1949 – da cidade onde a série principal se desenvolve. Somos testemunhas da chegada de alguns habitantes da segunda ou terceira leva, que se tornarão em conhecidos e centrais personagens em Top Ten, mas aqui estão ainda a apalpar terreno, confusos numa cidade, Neopolis, que pretende ser uma experiência demográfica, por um lado com laivos de utopia – uma sociedade avançada, onda as maravilhas da tecnologia são empregues de imediato – e por outro com um ambiente de terror fascista – não deixa de ser um guetto urbanizado onde se despejam os super-heróis longe da sociedade “normal”. É o início de carreira, uma espécie de história que já estamos habituados com “Jovem Super-Homem”, “Batman: Ano Um”, “Na primária com Thor”, ou coisas assim...
As histórias de Top Ten sempre me pareceram "half-cooked", mas provavelmente isso é propositado, pois o fim dessa série não era criar epopeias constantes – Promethea parece uma orgia de desenlaces que estão sempre em crescimento, e a Liga.... uma aposta cada vez mais larga em sacudir o pó de “clássicos” literários, por exemplo – mas sim mostrar como era o dia-a-dia de uma esquadra de polícia de uma cidade onde todos os cidadãos têm um ou outro super-poder. Logo, a opção eram pequenas intrigas, crimes mais ou menos banais ou mais ou menos hediondos, as relações que se cruzam entre os policiais, o creme favorito nos donuts. Hill Street Blues, outra vez. Mas um outro aspecto interessante da série, e que não descortino se da responsabilidade de Alan Moore (famoso pela picuíce e detalhismo dos seus “guiões”) ou de Gene Ha, era a permanente homenagem a toda a espécie de personagens de banda desenhada espalhados pelas vinhetas; e não só super-heróis, todos mesmo. Talvez essa escolha seja de Moore, pois repete-se na série Smax, uma das personagens de Top Ten, mas desenhado por Zander Cannon. Mas também poderá ser da inventiva de Ha. Essas piadas continuam neste volume, e parecem regredir no tempo, homenageando desta forma fátua personagens mais antigas (Little Nemo, Popeye, Alley Oop, Lil’Abner, etc.). O trabalho da cor também parece ser uma forma – simples – de dar um ar vetusto à coisa. The Forty-Niners não deixa de ser do mesmo tom. Há uma crise, é óbvio, resolvida de modo dramático e espectacular. Existem inimigos ocultos que se revelam mais tarde, e perigosos. Fazem-se amizades, conhecimentos, amores. Desfazem-se alianças e acusam-se traições. Vinga-se, defende-se e ataca-se, faz-se justiça. Algo de novo debaixo do sol dos super-super? Não me parece.
The Plot. The Secret Story of "The Protocols of the Elders of Zion". Will Eisner (W. W. Norton)
Na Ler no. 66, da Primavera de 2005, João Ramalho Santos apontava para que, tendo morrido Will Eisner, se esperariam demonstrações de crítica, análise, saudosismo, balanços, crestomacias, hagiografias, desconstruções, que se balançariam entre a “sob-” e a “sobrevalorização”, o que é muito bem visto, por um lado porque ao criticarmo-lo perante fãs incorreremos num crime de lesa-majestade, e ao canonizá-lo perante os detractores estaremos a “chover no molhado”, e por outro a obra e o legado de Eisner é também, ela e ele próprios, participantes em assombrosas invenções, descobertas formadoras, linguagens inaugurais, e generalidades pouco surpreendentes, continuidades de moralismos esperados, reflexões de uma mundana técnica (que é a origem da arte, via etimológica).
Não conhecer Eisner, ao falar-se e pensar-se na banda desenhada, não é um pecadilho nem uma questão de gosto pessoal, já o sabemos, é ignorância dura. Não apreciá-lo não é um crime, mas resultará talvez do desconhecimento do largo espectro da sua criação, que tanto pode alegrar estes como aqueles leitores, os segundos mais atreitos a uma moderna concepção, mais livre e pessoal da banda desenhada, os primeiros apertados pelo escapismo e o culto do (super-)herói. As aventuras de The Spirit e To the Heart of the Storm foram pensados, escritos e desenhados pela mesma pessoa, sim (apesar dos colaboradores em The Spirit), mas estamos perante duas produções muito diversas.
The Plot. The Secret Story of The Protocols of the Elders of Zion, surgido postumamente, não deixará portanto de ser alvo de significativas interpretações, como todas as obras póstumas e Nachlasser de grandes autores. Não falarei muito do conteúdo, pois o livro de Eisner é completo precisamente nesse fim: fazer um retrato e a biografia de um falso escrito, atribuído a uma suposta organização secreta judaica, cujo intuito seria conquistar o mundo, mas cuja falsidade alimentou nos finais do século XIX e no século XX o contínuo e crescente anti-semitismo que culminou, esperemos, na II Guerra Mundial. Essa ideia ganhou muitos avatares, e na exposição recente sobre Erich Kahn no Museu de Arte Moderna em Sintra há uma série de documentos da Alemanha Nazi que demonstram essa influência: por exemplo, a capa do Der Stürmer de 12 de Agosto de 1934, com uma caricatura de uma suposta reunião dos “Velhos do Sião” na capa. Portugal não escapou a essa atitude, não esqueçamos o famoso, polémico e mal-compreendido (será “anti-semita”? ou simplesmente racista nos seus pressupostos?) A Invasão dos Judeus, escrito pelo modernista Mário Saa e publicado em 1925 (com a foto de Fernando Pessoa, entre outros, na capa, poeta pertencente à “raça social judaico-luso-britânica”).
Pelo que entendemos, a desconstrução desta mentira foi uma das preocupações que Eisner acalentou durante largos anos da sua vida (“immense personal concern”, diz ele). Aliás, a saga dos judeus nova-iorquinos é um tema sobejamente discutido em Eisner, o problema da representação do judeu também, sobretudo com Fagin, the Jew (a partir de Dickens), já para não entrarmos na discutida mitificação de Cole como avatar do ficcional “Judeu Errante”. Fruto de investigação, obsessão, trabalho, discussão, este livro último foi construído com o propósito de “expurgo” do mundo de uma mentira, como as melhores e de maior sucesso, tão bem urdida que passa por verdade (não é mais simples acreditar numa conspiração milenar sobre códigos, Grais e Priorados do que nas circunstâncias reais sócio-políticas da Palestina nos séculos de passagem das Eras?). A razão é simples, e suscita frases feitas, desde a ficção ser mais forte que a realidade e que quando se deseja contar uma mentira, mais vale torná-la enorme e espatafúrdia, que mais êxito terá que uma pequena.
As únicas ressalvas, a meu ver, são duas. A primeira prende-se com a atitude geral perante a banda desenhada, por este autor, e que se expressa no seu prefácio. Já com Comics & Sequential Art e Graphic Storytelling & Visual Narrative Eisner tinha avançado algumas das suas ideias sobre o que se pode fazer com a banda desenhada, mas por melhores que sejam os seus conselhos não podemos deixar de ver esses volumes como manuais mais técnicos do que de reflexão teórica ou análise. As suas ideias mantêm-se em expressões como “a form of narrative language”, “vehicle of popular literature” e “accessible language” (v. o último parágrafo do prefácio a The Plot). Quer dizer, o seu programa de criação, que se foi complexificando ao longo dos anos, e que o período de utilização da bd durante a guerra como instrutiva – a educação dos soldados americanos passou muito pela utilização destas “tecnologias de informação”: a esmagadora maioria da produção de animação da Disney entre 1943 e 45 era dirigida a um só cliente, o Exército dos E.U. – jamais abandonou um grande débito para com a literatura propriamente dita, e toda a inventabilidade gráfica de Eisner foi feita sob o domínio da diegese, e não de um qualquer experimentalismo gráfico puramente visual. Os seus temas, personagens, tratamentos, ambientes, também bebem de um certo realismo americano, que não apresentaria grande choques aos seus leitores. É a sua obra, enquanto total, não obstante as suas diferenças internas, que o define como referência incontornável (completada por aspectos externos às suas bandas desenhadas, como a sua escola, as conferências, as conversas, etc.), mas é difícil fazer uma escolha mais estreita de qual dos seus livros se torna o mais significativo: a escolha poderia cair em A Contract with God, The Building, To The Heart..., ou o mais recente The Name of the Game, que parece repescar todos os temas soltos anteriores num só livro.
A ver se nos entendemos: Eisner contribuiu sem dúvida para um amadurecimento mental da banda desenhada, mas não se lhe pode atribuir essa responsabilidade por ser mais velho que outros autores e muito menos fazer brilhar a sua carreira com o brilho de trabalhos mais tardios. A Contract with God é sempre apresentado como a primeira “graphic novel”: mas para além de se tratar de uma colagem de histórias independentes, mas não una, e ter sido publicado em 1978, com a Europa já com uma larga tradição de álbuns (diferenças, há, mas assim tão impeditivas dessa comparação, não), já Eisner não estava sozinho na sua escrita de bd madura, mas acompanhado por autores como Robert Crumb, Justin Green, Jack Jackson, e isto apenas nos Estados Unidos e sem recorrer aos restantes hippies produzindo histórias de apenas “sexo, drogas e rock’n’roll”... Já para não falar de experiências mais obscuras e artísticas, e por isso menos visíveis. E The Spirit, se ainda merece uma atenta leitura da nossa parte, não pode essa leitura ser acrítica e deixar de notar no peso histórico que tem: os clichés do género, o tratamento de Ebony White, a moral, etc.
O mais indicativo da sua atitude geral perante o que a banda desenhada pode/deve ser expressa-se, porém, nestas suas algo limitadas associações à narração. É discutível, em termos filosóficos, que tudo o que nos é mostrado narra alguma coisa. Mesmo uma imagem simples, até abstracta. Tudo narra, por existir e ser fruída no tempo, de cuja experiência não podemos escapar. No entanto, parece-me que quando Eisner se refere a “narração”, está a prender-se sobretudo à estratégia literária, o que colocaria de lado outras experiências menos “narrativas”, e que não importa agora estar a ilustrar com uma infindável lista. E quando se diz dedicar a “um veículo de literatura popular”, implicará, mesmo que diagonal e indirectamente, que uma banda desenhada mais complexa, logo, menos popular, não merecerá grande espaço. Outra lista se seguiria, sem grande interesse.
A segunda ressalva tem a ver com política. Este é um livro, como muitos outros, que apenas servirá a “pregar aos convertidos”. O anti-semitismo, quer o geral, ignorante, puramente racista e mentalmente retrógrado, quer o que mistura “zionismo” com “direitos palestinianos” com “capitalismo selvagem” com “usura”, etc., mas não menos ignorante, continuará a descobrir formas de manter este mito vivo. Se bem que não se fale mais em poços envenenados e a necessidade de misturar, nos ingredientes do pão ázimo, o sangue de cristãos inocentes, as generalizações sobre “judeus” (que tanto podem abarcar camponeses pobres de Ponte da Barca como endinheirados de Silicon Valley, de colonos israelitas a cabreiros etíopes) continuarão a servir propósitos menos honestos. No entanto, é possível, se for editado em formatos mais acessíveis – tal como os “Chick tracts” que rodam pelo mundo inteiro à espera que abracemos Jesus Cristo nos nossos corações – é possível que essa mentira se desfaça... Não nego que algumas destas ressalvas são apenas um breve apalpar terreno que serviria a uma longa e abalizada discussão, mas terminarei com as palavras que utilizei noutro artigo, o qual dedicara a Will Eisner: “Não sendo o primeiro, nem o segundo nem o último autor de banda desenhada a pensar criticamente o modo em que trabalhava, foi no entanto um dos seus mais brilhantes maître artisan en métier d'art. Aquando da sua passagem pela Amadora [anos atrás], troquei umas brevíssimas palavras com Eisner. E é a sua forma de gigante se apequenar junto a nós, anões, que nos torna ainda mais pequenos.”