12 de outubro de 2005
Gilgamesh 2, Le Sage. Gwen de Bonneval & Frantz Duchazeau (Poisson Pilote).
Já tendo falado desta série anteriormente, a ansiedade chega ao fim com este segundo e último álbum, e as expectativas são preenchidas.
Quero apenas sublinhar a perícia com que os seus autores conseguem montar este álbum, seguindo regras clássicas da narratologia, da montagem da prancha (mise-en-page) e da polidez que o texto alcança em certos passos. (Mais)
É óbvio que os franceses trabalham num país que tem à sua disposição várias e variadíssimas versões desta primordial epopeia, assumindo formas tão diversas desde a seca, literal e academicamente apresentada versão até à mais brilhante das liberdades poéticas, passando pela versão juvenil ao romance historiográfico. Ao passo que em Portugal apenas temos uma, incompleta e até problemática versão (isto é, o seu texto de base), de Pedro Tamen, como já indicara, cuja verve literária nos apresenta um belo texto sem dúvida, mas ainda assim pergunto-me até que ponto repõe a falta do leitorado nacional deste texto fundamental à História da Humanidade.
A epopeia chega ao fim nos episódios mais marcantes de Gilgamesh: a sua dor pela morte de Enkidu, que se torna obsessiva (os freudianos falariam de melancolia, não de luto) e o obriga a atravessar o mundo até à Terra dos Mortos, muitas léguas-duplas para além... E como, não obstante ver-se enganado e amesquinhado pelos acontecimentos, e presenteado com uma última mas atemorizadora visita do seu amigo (amado?, diriam alguns estudiosos) acaba por descobrir qual o verdadeiro “sentido da vida”, já que é sempre esse o tema destas obras, a vitalidade dos vivos porque vivos. Dois momentos de ouro é a passagem de Gilgamesh pela porta dos Montes Gémeos, retratados numa prancha a negro e com figuras a branco tenuemente delineadas, soltas nas trevas, e a sua brusca transição para uma zona de cor, brutal, exagerada, destoando do resto (quase apeteceria dizer “artificial”, se não o fosse sempre uma obra de arte), como que um intervalo de distracção no caminho; e o diálogo entre o glorioso rei de Uruk e a taverneira (que depois se desvendará quem é), maravilhosamente orquestrado visualmente em quatro pranchas, mantendo os precisos passos do texto original, mas com uma série de focalizações visuais apenas aparentemente estáticas, mas na verdade quase dançantes (a angústia e decisão de Gilgamesh alterna-se, moldando o coração da taverneira que o incita nos futuros passos). Para quem estiver interessado em comparar adaptações, cotejem-se estes dois belos e poéticos (ainda que formalmente convencionais) livros com a versão “realista” de duas páginas incluídas no primeiro volume do The Cartoon History of the Universe, de Larry Gonick (que penso vir a ser editado em Portugal em breve?).
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