21 de janeiro de 2006
Acme Novelty Library #16: Rusty Brown. Chris Ware (Chris Ware)
Após alguns anos de espera, fome que foi sendo saciada pela inclusão de trabalhos curtos de Ware em outras publicações, ou seus arranjos gráficos espalhados pelo mercado, eis que nos presenteia o autor de Jimmy Corrigan com o 16º número da sua publicação Acme Novelty Library. As expectativas eram enormes, pois vivemos permanentemente sob a ilusão e desejo banal de “evolução”, de “melhoria”, de “cada vez mais” da parte dos autores. Não escapo a essa ilusão a maior parte das vezes, mas neste preciso caso, não há resposta definitiva, pois em relação a todo esse fôlego que foi a colecção de Corrigan, este Rusty Brown vem fazer um contínuo nada displicente, mas nenhum corte. Não dou qualquer valor moral nem a “contínuo” nem a “corte”.
Algumas destas pranchas foram sendo apresentadas em exposições em várias galerias norte-americanas nestes últimos três anos. Ver a “arte original” e comparar com a forma como foram incorporadas na edição em livro levar-nos-ia a discussões interessantes sobre a distância que existe entre essa pretensa “originalidade” do desenho em papel e o seu produto verdadeiramente acabado, destinado não só à reprodutibilidade como ao manuseamento e fruição do leitor, do “livro”. Um exemplo: a sub-/para-história dos irmãos Chalky e Alison, que corre como um rodapé (e funciona como tal, especialmente quando existem sobreposições/iterações de eventos em diferentes perspectivas), foi desenhado num número reduzido de pranchas, cada uma com 84 vinhetas (algumas delas sub-dividindo-se em 4), e para se incluírem no livro foram retalhadas em tiras de 7.
As personagens são recorrentes – trata-se da infância de Rusty Brown, que será em adulto um “loser” e um “nerd” dos quadradinhos e ficção científica com o seu amigo Chalky. Aliás, este é o primeiro volume dessa série prometida. Há, porém, uma assunção especial da auto-ficção, quando surge um professor de arte que é o próprio Ware. Os temas são também os frequentes: solidão, falta de amor, de compreensão, de realização, falhas e faltas de um ponto de vista existencial. O “estilo” gráfico de Ware – cenários esquematizados, vinhetas e pranchas estruturadas formalmente (ele próprio fala de “conto glacial”), cores quase mecânicas – parece minimalizar qualquer tipo de expressividade, mas esse é apenas um mal-entendido que ele próprio fabrica. A redução de informações gráficas nas personagens leva a que os mecanismos que significam as alterações de humor estejam concentradas nas pequenas diferenciações que leva a cabo nas aparentes iterações do rosto da personagem: basta a mudança de um ou dois traços (como já Rodolphe Töpffer dissera ser possível nesta “nova arte” no seu Ensaio sobre a Fisiognomonia) para transmitir toda uma onda de flutuação emotiva. Digamos que Ware é um inimigo do “actores de método” e prefere uma aproximação mais “nouvelle vague” na expressividade das suas personagens. Less is more, de facto. Não obstante, o momento em que o professor Brown centra a sua atenção na recém-chegada Alison/Alice, a vinheta que mostra esta última personagem parece escapar a essa regra de ouro do “minimalismo” wariano. É uma figuração muito subtil, que nada tem a ver com o estereotipado da “Supergirl” no sonho de Rusty, e que marca sobretudo a percepção veladamente apaixonada do professor Brown.
Há uma série de outros dispositivos gráficos interessantes e que tornam esses pequenos exercícios como mais-valias de todo o objecto-livro: o “genérico”, a introdução textual, cuja metáfora do floco de neve pode ou não ser entendida como extensível a toda a obra de banda desenhada, a prancha em que o autor/editor se dirige directamente ao leitor potencial num diálogo sobre a própria obra (e nos revela certos aspectos da sua vida, ou a romantiza da sua maneira peculiar), a inclusão dos planos de cada andar do prédio que se apresenta no final do livro, etc. Esses exercícios não são, de modo algum, ao acaso. Abaixo, explicar-me-ei melhor.
Há algum tempo, falei das edições de certos fanzines passarem para as mãos de editoras profissionais, mas em que essa mudança não implicou qualquer espécie de perda de liberdades criativas do autor. Neste caso, se bem que a liberdade esteja imaculada como antes, trata-se do contrário, pois esta edição é de autor, sem a chancela da Fantagraphics – se bem que a distribuição e a os contactos de produção tenham sido os mesmos. É uma nota de interesse, acrescida pelo facto de o próprio Chris Ware a considerar uma “edição de autor”, de limitada e irrepetível (é óbvio que se trata de estratégias comerciais, mas é um belo objecto, de facto).
As quatro “Building Stories”, uma espécie de variação d’“As Quatro Estações”, onde essa linguagem de espacialização do tempo a que Ware nos habituou se torna central e o próprio modo de estruturação das estórias, foram antes publicadas – cada uma, semanalmente – num suplemento de Domingo do New York Times. Trata-se de um edifício de três andares, com uma cave, e começando de cima e focando cada “episódio” num andar, nas personagens que o habitam e na estação (não por ordem cronológica), o círculo de relações vai-se alargando paulatinamente, complexificando as “redes narrativas” que os nem, mesmo que essas ligações sejam apenas “wishful thinking” da parte das personagens. É este tipo de experimentalismos de um grande êxito de aplicabilidade narrativa que tornam Chris Ware – ou noutros autores – a sua importância enquanto autor e verdadeiro contribuidor para uma espécie de, não de “evolução” (inexistente nas artes), mas antes de “intensidades”, fulgurações que de repente se nos tornam significativas, brilhantes… Convenhamos que esta tipo de construção, por si só, não é propriamente “original”. Francisco Ibañez (sim, o do Filémon y Mortadelo) experimentou desde os anos 80 uma fórmula quase-próxima com 13, Rua del Percebe e depois o 7, Rebolling Street. Mas ao passo que Ibañez transformava cada divisão do prédio, visto em “plano de corte”, como simples vinhetas onde colocava gags separados uns dos outros, Ware transforma essa espacialização como o fulcro da sua construção. Há outras linguagens gráficas a se concentrarem aqui ao mesmo tempo: a infografia e o pictograma, as estruturas visuais da genealogia, as convenções sígnicas dos desenho geométrico (“rigoroso”) da arquitectura… Mas nada disso surge por acaso, como um experimentalismo vazio, só “para ver como funciona”. São conscientemente aproveitados e empregues para um fito, que é o da estruturação narrativa. Não que toda a banda desenhada ou artes visuais de sequencialidade tenham de ser “narrativas” para serem de êxito – mas aqui entraríamos na discussão do que significaria “sequência” se não no tempo, e não é o momento. Importa ver que Ware, com estas quatro estórias, faz um imenso contributo à crise desse mesmo entendimento, provocando uma acronia sobre a narrativa, colocando o ónus da estrutura no espaço e não no tempo. É aí que reside o seu (ainda) valor de “revolucionário”, cuja melhor definição é aquele que permite ou faz mudar de eixo, e não que se mantém na mesma estrada, ainda que com espalhafato.
sugiro a leitura de Cachalote, de daniel galera e rafael coutinho.
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