23 de janeiro de 2006
Lincoln 3. Playground. Irmãos Jouvray, Olivier & Jérôme (Paquet)
Dizia Borges que não havia livro no mundo, por mais banal ou medíocre que fosse, que não tivesse uma frase memorável. É talvez uma verdade, e temos de nos esforçar para ter a capacidade de a capturar, soletrar e compreender no seio do acto mais penoso de leitura.
Se bem que a leitura de Lincoln não seja, de todo, penosa, banal, e esteja bem acima da mediocridade, esta é uma série relativamente comercial, todavia, que não faz mais do que trabalhar sobre elementos clássicos de construção da banda desenhada, elementos dos quais seria até fácil fazer uma "história"... As páginas são estruturadas de formas simples, mas legíveis e bem ritmadas, as figurações claras e suficientemente agenciadoras, a peripécia (e seus "episódios") bem encaixados, se bem que sejam flechas que jamais olham para trás. Não há propriamente uma tressage de todos esses elementos diegéticos, cf. Groensteen.
Lincoln, cowboy solitário, amargo com a vida, vive contra tudo e todos; Deus lui-même cruza-se com ele e passa a invectivá-lo a uma nova existência, feita de calma e atenção para com os outros; junte-se o Diabo para arranhar o disco um pouco, e eis que temos uma mistura de géneros - auto de mistério mais western mais comédia de acção - ligeira, mas dissonante dos escaparates. Uma pequena peregrinação pelos territórios da ascensão de uma consciência própria, enfim, que se defende do controle pouco velado desejado quer por uma parte (Deus, e os seus "inefáveis e indizíveis planos") quer por outra (Diabo, e o "só quero chatear as pessoas").
A presença de Deus foi também uma constante nesta arte, mas há de facto um mais sentido retorno de há umas décadas para cá (aliás, Le Retour de Dieu era um dos títulos das antalogias da Autrement)... Pode ser a Sua bendita presença integrada num novo sistema ficcional, como em The Sandman (Neil Gaiman et al.), pode ser como fundo político-religioso para a raiva contra o sistema odioso de controle social que a Igreja montou como em The Preacher (Garth Ennis e Steve Dillon), pode surgir ora como metaforizada de uma forma directa (Grant Morrison e Jon J. Muth em The Mystery Play) ora como personagem da sua própria história (como tento fazer na Saga de Deus, com Marcos Farrajota nas Cricas), e tantas outras formas.
Em Lincoln, não há exageros de raiva adolescente como em The Preacher, nem humores fáceis. O facto de Lincoln se aperceber imediatamente que apertar o pescoço a Deus não lhe traria prazer algum em especial revela de imediato a maturidade que se esconde na própria personagem - e nos autores. Os diálogos metafísicos não são mantidos exaustivamente, surgindo antes na troca de duas ou três frases por entre a acção que se desenvolve nesse momento - ajudar um índio na sua vingança, proteger cidadãos, salvar um miúdo - mas é esse "ruído de fundo" que de vez em quando surge à tona de forma visível o verdadeiro móbil de toda a série. O livre arbítrio é o protagonista destes livros. Sobretudo a dificuldade que ele tem em se assumir, devido à quase impossibilidade de escapar das circunstâncias presentes, dos aparentes "empurrões do destino", do peso das consequências de cada acção tomada. Como não pode deixar de acontecer, há uma certa quantidade de eventos deux ex machina, que por vezes levam a uma certa desilusão na forma como os autores mudam de cenário ou evento, mas é o expediente que encontram para delinear os papéis diferentes entre Deus e o Diabo, e voltarem então ao tema central.
Do que conheço de outros títulos dos irmãos Jouvray (separados), este parece-me o mais intenso trabalho, se bem que seja uma intensidade sob uma camada que pareça pouco notável. Como disse, é preciso um pequeno esforço e escavar até nos apercebermos do que merece ser visto... neste caso, basta riscar a superfície.
Nota: o quarto volume (e último?) deve estar quase a ser publicado. Veja-se site próprio www.bd-lincoln.com
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