25 de fevereiro de 2006
Crazyman. Edmond Baudoin (L'Association)
A obra de Baudoin, como já o referira, tem vindo a aproximar-se com todas as suas matérias e personagens e espaços de uma preocupação central do autor, que é a da Memória. Não enquanto mero tema, que serviria para “escolher de que se fala”, mas elegendo-a como território onde emergem as suas palavras e eventos e a própria matéria do livro em questão. É o que significam, centralmente, as edições já surgidas e a surgir de Le Chemin de Saint-Jean. Baudoin, ele mesmo, surge nos álbuns, dando-nos as boas vindas ao seu recorrente “je me souviens” (eu lembro-me”), onde habitam a sua infância, a sua mãe, o seu pai, o seu irmão Piero, as viagens, as mulheres, a filha, os desenhos...
Crazyman surge como uma espécie de intervalo, de pausa, de rêverie, de gozo... [neste parágrafo revelo a história toda] Crazyman é um super-herói americano (tudo aponta ao Super-homem, com a excepção da máscara) que desistiu de o ser após o 11 de Setembro. Virgem sexual, é também virgem político, existencial, pessoal. Um primeiro acto de amor que lhe é ofertado lança-o numa descoberta do mundo, das culturas diferentes, do Outro e um amor infinito por todas as belas mulheres que vai conhecendo. Resolve não ser nunca herói, mas não resiste a “testes”, a “grandes acções”, até que uma criança, que adora as aventuras do Crazyman da banda desenhada, personagem de ficção, lhe diz que os super-heróis não existem, só as pessoas verdadeiras. E Crazyman deixa de o ser.
Pode-se ler este livro de várias maneiras. Para já, um gozo aos universos das banda desenhadas, com referências fáceis de localizar (e que recordam um outro exercício, assustador, já aqui indicado), mas que é extremamente pertinente na obra de uma pessoa que caiu no meio da banda desenhada “por acaso”, sem a conhecer bem, sem nem sequer gostar muito dela... Mas é também um óbvio gesto crítico aos americanos em geral, à sua cultura surda, aos seus hábitos provincianos, a sua política cega, a sua banda desenhada comercial que nada adianta, as suas manias de imperialismo condescendente... escusado será dizer que esta mesma crítica peca por outro tipo de reduções, de estereótipos, de gestos delicodoces, de idealismos nefelibatas (os pobres são puros, os ricos são terríveis, tudo existe conspirando contra o bem do povo)... Não é que esteja “errado” ou “correcto”, simplesmente que Baudoin prefere este jogo de simples papéis para construir esta alegoria, e não se trata de uma banda desenhada entregue à investigação complexa de um problema complexo (como, caso obrigatório, Joe Sacco, algum Peter Kuper, Seth Tobocman, David Collier, Marjane Satrapi...). E pode ser lido ainda como o crescimento de um homem para o mundo e para os outros.
Nada disto significa, porém, que não despontem em certos locais as especificidades a que Baudoin nos habituara. Não será toda esta brincadeira reminiscente dos desenhos a quatro mãos e outros jogos que fazia com o seu irmão, em Piero? Não há aqui uma espécie de diário de bordo imaginário pelos locais por onde Baudoin viveu e viajou e criou? Canadá – Le Chant des Baleines, Japão – Le Voyage, América do Sul – Araucaria, África – Nam... Não surgirá este livro como um outro tipo de Carnet de Voyage como os de Sfar, e no qual Baudoin revela a sua descoberta de “outras bandas desenhadas”?
Até imageticamente, surgem gestos baudoinianos... A bela Tamiko, força sexual que esconde a morte e se nela transmuta (quantas vezes Baudoin o desenhou, a este evento?); as vinhetas de direcções de leitura e acções complicadas, de inextricável entendimento, das pranchas 60 e 61, mas de que no interior da própria narrativa se faz pouco; a reutilização de imagens famosas para introduzir um estranho e acre humor lá dentro; uma meia-dúzia de traços para fazer surgir uma paisagem natural bela e que convida à solidão das personagens que nela se passeiam.
Não sendo mais um bloco para construir a Torre da Memória na qual o autor tem trabalhado nos últimos anos, talvez Crazyman seja uma espécie de cornija, de remate, de gárgula que a tornará, porém, mais decorada, mais viva, mais habitável.
Caro Pedro,
ResponderEliminarA tua colecção de BD faz inveja à colecção pública da Bedeteca.
Um abraço,
Adalberto
zniqex
(o word verification abaixo)
Obrigado pelas palavras, mas é mentira... Em todo o caso, em caso de morte, lego as "Dirty Stories" à Bedeteca. Mas não as leiam...
ResponderEliminarObrigado pela palavra-verificação.