28 de agosto de 2006
Babel. David B. (Coconino Presse/Vertige Graphic)
David B. é um daqueles nomes que se tornou absolutamente incontornável na banda desenhada contemporânea, mesmo à escala mundial, num espaço de tempo tão curto como pouco mais de dez anos. Um aspecto surpreendente da sua promoção e subida é que não se deve a pirotecnias baratas e bombásticas, mas pura e simplesmente a um prazer claríssimo que Pierre-François Beuchard (é esse o desdobramento e origem de parte do pseudónimo) transmite através das suas estórias. A maioria dos seus títulos trata-se de transcrições de sonhos, ou transformações destes em pequenos contos; é ainda autor de um punhado de álbuns mais comerciais nas grandes editoras francesas (mas não menos competentes, divertidos e bem-feitos), mas o grande destaque reside obviamente naquele que considero (e não estou sozinho, claro, nesta obviedade) ser a sua mais acabada e maior obra, L’Ascencion de l’Haut-Mal, um longo narrar sobre a epilepsia do seu irmão, mas que se imiscui pelas dobras da memória, os interstícios do imaginário partilhado e co-criado com o irmão (neste aspecto, a relação entre ambos é muito parecida com as de Edmond Baudoin e o seu irmão, conforme muitos dos seus títulos, entre os quais Piero, por exemplo), as linhas de fuga que as leituras e as preocupações estéticas e intelectuais do David B. actual projecta sobre o pequeno Pierre-François-personagem, etc.
A recente série Babel é uma espécie de convergência de todas as linhas de trabalho de David B. e o que parece ser uma espécie de subtítulo é mesmo claro sobre isso: “Histórias, mitos, memórias, sonhos”. Mas na verdade há mais linhas, e cruzamentos entre elas, como notarão nos subtítulos dos episódios internos a cada publicação. A busca por um programa torna-se complicada, já que ainda se poderá entender Babel como a continuidade de L’Ascension, mas em que se torna possível a invasão dos outros temas nesse tratamento da memória.
O projecto editorial nasce dos esforços combinados da Coconino Press/Vertige Graphic (ou seja também em italiano, e ainda editado em inglês pela Fantagraphics, em espanhol pela Sins Entido, em holandês pela Oog & Blik, e alemão pela Avant Verlag), na colecção Ignatz (que apresenta grandes afinidades com a colecção Feu da Amok, como se entende mais claramente com Mattotti). A mais-valia formal em relação a trabalhos anteriores de David B. (afora os trabalhos mais comerciais, como Les Chercheurs de Trésors) é, para já, o uso de cor, numa bela impressão a duas cores (com redes); uma capa envolvendo o livro (ou revista, se preferirem) a quatro cores e que apresenta ainda uma história curtíssima e completa nas badanas; e a integração de muitas fórmulas plásticas que David B. experimentara em L’Ascension: sobretudo a construção de pranchas “tabulares” de rostos compósitos com elementos díspares (apresenta-se um exemplo disso).
Estando nós ainda na publicação do 2º número, não se desenha, para já, uma maior coesão narrativa como a epopeia mnemónica sobre o irmão, mas estamos perante um exercício algo complexo de equilíbrio de continuidade entre e individualidade de cada episódio que poderá levantar novas questões formais em relação à narratividade na banda desenhada (analogamente ao Wimbledon Green, de Seth). Mas é bem possível que uma questão se mantenha como fio vermelho da série, cosendo e aproximando tecidos tão diferentes como “a família”, “o irmão”, “o imaginário infantil”, “as mitologias do crescimento”, etc. Essa questão, ou esse fio vermelho, é “o direito que temos às nossas próprias guerras”. A guerra, e a presença multímoda da morte, torna-se em Babel permanente e mutável, a um só tempo, como se fosse a sua própria natureza a que delineia a existência humana mais profunda e que aproxima os vivos uns dos outros.
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