17 de agosto de 2006

Désoeuvré. Lewis Trondheim (L'Association)


Onde a colecção Côtelette abria um largo espaço a que os autores de L’Association se espraiassem com desenhos livres, sketches, apontamentos diarísticos sem preocupações narrativas ou de continuidade e anotações sobre o que lhes viesse à cabeça, inaugurou a Éprouvette um espaço de mais coesa e dirigida reflexão sobre a banda desenhada, sobretudo a relação pessoal dos artistas com a sua própria criação. Se Menu a iniciou com um libelo cheio de verve e bílis, Trondheim vira o instrumento a si mesmo, e faz um balanço da sua vida, da sua obra, do seu papel e relacionamento com os demais. É tempo de uma crise criacional de um autor que atingiu um auge na sua carreira, para mais um autor que a iniciou sem pretensões de desenhador, mas que acabou por se tornar um dos mais inventivos autores dos últimos tempos vindos do espaço franco-belga, e para mais um autor com uma característica algo rara em combinação com essa inventabilidade: o humor.
Mas o humor desaparece quase por completo destas páginas, em que os pesos da idade, das correrias entre festivais, das responsabilidades, da glória fugaz, acabam por subverter o prazer que havia dado início à sua, na falta de palavras e preso no interior de uma redução da banda desenhada, “aventura”. A fatiga e a depressão parecem estar ao virar da esquina, e o acumular de exemplos de outros autores derrotados por esse factor (Franquin, Macherot) parecem conspirar para que Trondheim também faça parte dos números.
É curioso que o autor abra este pequeno livrinho confessando que se passaram 80 dias desde que desenhou uma prancha de um álbum. Ele é preciso: “dessin d’un album”. Continuará a desenhar, certamente, mas não naquilo que constitui o seu central “ganha-pão”, ou o seu métier. É curioso porque essa é a primeira afirmação no desenho da primeira página de m novo livro que ali temos nas mãos. Por isso é um derrotismo (inicial) que se vê gorado pela própria existência do livro presente. Haverá confissão menos velada de que a crise num autor desta envergadura é facilmente superada? Pois apesar de ser um livro em que haveria toda a liberdade para criar camadas de textos e desenhos desconexos – como surge aqui e ali nos seus próprios Carnet de Bord – Trondheim estabelece aqui estratégias de espaços e tempos (os saltos entre um comboio e um avião), emprega metáforas visuais dramáticas, cultiva um cruzamento de referências salutar entre a realidade (autores como Moebius, Fred, Tibet, Gotlib, os amigos de L’Association, os festivais) ou da sua própria obra (Lapinot emergindo da terra é um momento alto)... Como se pode ser désoeuvré através da sua obra? Trondheim namora com a beira do abismo, mas ser-lhe-á impossível tombar nele. Por exemplo, a prancha que aqui se apresenta figura bem esse contínuo antagonismo: uma sensação de quebra, mas que se sublima na capacidade de “jouer encore”. No entanto, não se pode ser insensível perante as dúvidas que assolam as conversas e reflexões presentes neste livro. É talvez necessário passar pelas barreiras de Trondeheim (inclusive as da idade) para se perceber que escolhos a simples passagem do tempo nos ergue à frente.
Este livro, porém, que parte para responder às questões de Trondheim sobre o “envelhecimento dos autores de banda desenhada”, serve outros propósitos que não estariam no centro da sua origem: serve de história, de uma história íntima, da vida de muitos autores famosos (não só franceses) e de que usualmente apenas vemos o lado glorioso – a obra; serve de caveat aos autores jovens ou que continuam a trabalhar. Mais uma vez, como Plates-Bandes, a sua acomodação à realidade portuguesa pode não ser totalmente correspondente ponto por ponto, já que o sucesso comercial nem sempre ou nunca é atingido entre nós, o sucesso crítico é impossível pois não há crítica, e o sucesso dos leitores pouco se reflecte para além de uma boçal e acrítica massa de fãs... Haverá excepções, dirão, e é claro que sim, confirmando as razões que levam tantos autores “promissores” a desistirem pelo meio em nome de carreiras mais sólidas noutros campos, ou em busca de um respeito mínimo que lhes era devido mas é-lhes negado pelos próprios cultores daquilo que pensavam ser o seu “campo”... Basta pensar na quantidade de mulheres que “desistiram” (leia-se “foram empurradas para fora de”) da banda desenhada em Portugal. Um outro propósito também é que a própria existência de Désoeuvré é um passo decisivo para a demonstração de uma banda desenhada plenamente adulta, sem truques alguns, no despojamento total da existência humana do seu autor (fora os bicos de pássaro com que Trondheim se desenha....?). O desenho incompleto das paredes do estúdio de Trondheim na última prancha serão sinal de que há ainda muito a fazer? Posted by Picasa

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