2 de setembro de 2006
Stadt der Tiere. Gregor Wiggert (Kiki Post)
Na tradição da banda desenhada com animais antropomorfizados, de que Groensteen fez a história em Animaux en Cases, sabemos que essa escolha pode servir a fins muito distintos e diversos de narrativas. Ora mais infantis, passando pelas indústrias Disney, o Babar dos Brunhoff, títulos como Spiralbound ou Ariol, ora trabalhos para um público ligeiramente mais velho e/ou que mistura convenções de vários géneros (penso sobretudo em Trondheim com os seus Lapinot, Donjon, etc., mas também se poderia falar de La Bête est Morte! desenhada por E.-F. Calvo), ora ainda com fins bem mais complexos, adultos e dolorosos, de que Maus de Spiegelman é o paradigma. Um outro grupo ainda que se poderia avançar seria aquele em que esses mesmos estratagemas formais se empregam para a criação de pequenas e melancólicas rábulas sobre a condição humana, como Goodbye, Chunky Rice, de C. Thompson, Salmon Doubts, de Adam Sacks, e este novo A Cidade dos Animais, do jovem alemão Gregor Wiggert (que participa numa excelente antologia de banda desenhada alemã, a Orang, da mesma editora).
A acessibilidade da banda desenhada alemão, em Portugal, não é das mais fáceis, por um lado pela falta de canais de distribuição e exposição de banda desenhada que venha de países que não dos Estados Unidos ou do eixo franco-belga, que se torna grave em relação ao mercado espanhol, por exemplo. E por outro pela língua, que não costuma ser conta-corrente mesmo nos leitores poliglotas. Independentemente dessa acessibilidade ser, julgo, mais reduzida em relação a este título, penso que este livro merece a nossa atenção. Este pequeno livro reúne quatro contos que foram sendo criados no quadro num contexto escolar (Ciências Aplicadas), mostrando a história de um jovem homem-carneiro, Arthur Lammü, e a vida que leva na nova cidade onde habita, Stadt der Tiere/A Cidade dos Animais, pela qual não morre de amores, mas onde tenta estabelecer novas relações. É uma Berlim ou um Hamburgo, seguramente, transfigurada nos seus espaços urbanos mais comuns e mais propensos às conexões humanas – do café a um parque, de um cinema a um clube nocturno, a cave onde tem o seu “lar” aos apartamentos de amigos e conhecidos... Somos testemunhas das relações que tem com amigos, companheiros, meros conhecimentos, os senhorios e, mais centralmente, as raparigas (ou fêmeas), com quem parece ter dificuldade em atear relações mais profundas, sobretudo amorosas.
A força das histórias de Wiggert reside no facto de que esse desejo em aceder ao amor é real mas não presente tangencialmente, isto é, não há quaisquer marcas verbais nem é representado por acções. Bem pelo contrário, é a inacção e o silêncio de Arthur, muitas vezes como “ponto final” dos episódios, o que marca a presença desse desejo. A prancha aqui presente mostra a sua amiga a cruzar-se por acaso com o namorado, e à separação dos amigos que tiveram um dia preenchido. A recompensa do dia é a separação e impossibilidade de uma relação para além dessa amizade. Na última vinheta, a diferença do modo como Wiggert desenha o olho de Arthur parece querer indiciar quase um constrangimento visível, se não mesmo lágrimas. Os truques formais do artista passam por uma despreocupação de perfeccionismos e de acabamentos, como se fosse todo o livro desenhado por um Richard Scarry que os não tivesse terminado, chegando mesmo a ter traços dos espaços, que deveriam estar invisíveis ou “sob” o corpo das personagens, a atravessarem-nas, como se pouco importasse entrar numa falsa ilusão de profundidade ou de esconder as especificidades de um desenho muito solto.
Se bem que as especificidades dos animais não sejam tão exploradas como no caso de Renier, por exemplo, ainda assim espalham-se aqui e ali algumas pequenas piadas, como um galo referir-se à sua infância enquanto “pintainho”, ou vermos num cabeleireiro uma ovelha a ser tosquiada... Todavia, essa veia de humor gráfico e até, de certo modo, facilitadora da comédia, não está presente precisamente para não “romper” o tom melancólico geral, que não descuraria de uma aproximação a um autor como Jeffrey Brown, por exemplo, e onde a verbalização tem muito menos espaço, aprofundando assim a disposição e personalidade de Arthur.
Nota: agradecimentos a Teresa Luzio, que me ofertou este livro pedido.
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