9 de dezembro de 2006
Lily Love Peacock. Fred Bernard (Casterman)
Fred Bernard faz-nos necessariamente associar este livro como parte de um universo diegético maior, já que a protagonista, Lily Love Peacock, é a filha da protagonista dos dois livros anteriores de banda desenhada de Bernard a solo, a saber, Jeanne Picquigny, de La tendresse des crocodiles e L’ivresse du poulpe (na Seuil). Mas aqui seguimos somente a vida, numa analepse despoletada por um acidente, desta jovem moça, a sua relação com uma nova amiga, Rubis, e o seu esforço em mudar de vida.
A voz (perspectiva, ponto organizacional) parece de facto pertencer a esta jovem modelo (top), mundana e relativamente hedonista. As crises pelas quais atravessa, que se prendem com a consciência da futilidade do mundo em que se inscreve, do crescimento, do futuro, e até mesmo nos poucos casos em que temas reais, do nosso mundo, são indicados, parecem porém estar sempre sob um levíssimo signo da superficialidade, por vezes mesmo atroz. As angústias que a invadem de vez em quando jamais atingem um peso que a lance num verdadeiro conflito, gatilho narrativo que a transformasse numa personagem acabada, e apenas vemos uma pequena sucessão de acontecimentos ditados pela sua vontade (e porque pode: abandonar uma carreira de modelo para perseguir a de cantora de rock não me parece ser uma grande missão, nem sequer fechada sobre a “descoberta dela mesma”, mas uma mudança de pequenos prazeres; mais, o facto de existirem sempre obstáculos mínimos, ou nenhuns, a essas mudanças, sublinha essa mera passagem).
É deslocada, portanto, a “estranheza interior” de L.L.P. Não se coaduna às acções, experiências e mesmo verbalizações... É como se ela suspeitasse da banalidade do seu mundo, quisesse atingir um outro mundo mais aberto, mas o peso do umbigo não a deixasse fugir (continua a trabalhar, a mudar de roupas magníficas, a frequentar todas as capitais do mundo, etc.). Sendo ela quem escreve os poemas-canções, que se apresentam dactilografados ao longo do livro, temos acesso ainda a essa dimensão. Mas essas mesmas construções textuais são mais descritivas e falsamente portadoras de níveis segundos de importância ou significado que qualquer outra coisa. São eles que impõem um ritmo episódico à narrativa, servindo por vezes de separadores de cena; talvez se procure assim um certo tom diarístico, indirectamente, mas do mesmo modo incerto, irregular, apenas agindo a vontade do momento, as livres associações da memória e o modo como ela é estimulada das mais variadas maneiras. No entanto, não se cria propriamente uma personagem “redonda”, como soe dizer-se, mas um filtro de duas dimensões por onde passa esta sucessão de eventos, cuja unidade, lá está, apenas existe por esse filtro.
O desenho de Bernard é rápido, todos os traços de seres vivos ou objectos é feito pelo e com o mesmo traço, como que de esquisso, recordando-me toda uma geração francesa que associo à Charlie Mensuel (Gebé, Plantu, Cabu), apesar de Bernard cultivar um maior peso gráfico (sombras, mais linhas de “recheio”, etc, o que não poderia deixar de ser pelo seu maior programa narrativo). A arte parece-me ter essa mesma falta de ancoragem que o récit.
Borges disse que não há livro, por pior que seja, que não tenha em si uma frase memorável. A frase, em Lily..., talvez seja a cena em que o pai (um caçador vivendo em África talhado à Hemingway, ou John Houston, ou Jack London, todos citados directamente) está a definhar na cama: sucessivamente, a filha vai narrando os sons que ele faz - “rosna”, “silva”, “suspira”, “transpira” -, e a cabeça do pai vai sendo substituída, respectivamente, pela de um leão, serpente, facóquero, hipopótamo. No entanto, apesar desta ser uma das poucas metáforas visuais empregues de um modo claro e pertinente, o contexto não lhe serve, pela razões já apontadas das personagens não serem exploradas de modo consequente e profundo. Logo, a força que esta cena teria não é atingida.
Se a colecção Écritures, da Casterman, pretende mostrar as potencialidades narrativas profundas da banda desenhada, este é um dos livros que leva a pensar que nem sempre os critérios de qualidade seguem a mesma linha d’água, que as críticas de Menu têm fundamento real, e que o desejo de criar uma nova perspectiva global da banda desenhada nem sempre é cumprida pelos próprios editores que se arrogam desse papel.
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