16 de janeiro de 2007
Três livros da Academia.
Vivemos num momento em que, precisamente o contrário do século XIX, a Academia vive mais atenta aos processos da contemporaneidade do que o “homem comum”. É ainda uma banalidade acusar alguém de “académico” ou uma obra de arte como “académica” para no primeiro caso marcar uma distância que impede um verdadeiro entendimento e no segundo uma delimitação do gesto a aspectos sem vida. No entanto, tal atitude é uma herança de um tempo passado. A Academia dos nossos dias – importa, obviamente, tomar em conta de que palco geográfico e disciplinar estamos a falar, nos Estados Unidos os saberes disciplinares dialogam de modo diverso do que em França, por exemplo, e muito mais diferentemente do que em Portugal – é, bem pelo contrária, atenta, inteligente, contribuidora mesmo por vezes para os actos criativos, se despoletar de facto um conhecimento íntimo e profundo sobre determinado assunto e ajudar a procurar novos caminhos que retornem a esse assunto com uma nova luz ou novas questões.
Creio profundamente que a existência de algo no seio da Academia pode fortalecer esse mesmo objecto. A reflexão é uma fase extremamente crucial para o crescimento desse objecto. A banda desenhada não é uma excepção. Já mostrei outros exemplos em que a banda desenhada se pode pensar, inclusivamente através da sua própria criação. Afinal, a divisa de Cézanne de que um pintor pensa com o pincel é reiterada inúmeras vezes por uma mão-cheia (mas não todos, em bom rigor) de artistas da banda desenhada. Mas o cultivo de uma reflexão mais balizada em termos disciplinares, que se encaixe num contínuo diálogo entre certo número (mais ou menos limitado) de referências, e a construção de um espaço de discussão regrado é outro dos pilares necessários à força de uma banda desenhada contemporânea. (Mais)
Se bem que exista já uma longa lista de referências absolutamente incontornáveis para um aturado estudo da banda desenhada – quer em termos históricos, formais, sociológicos, etc. -, sobretudo em francês, e uma dúzia de títulos importantes de autores portugueses (esmagadoramente relativos à produção nacional), é nos Estados Unidos que encontramos uma mais continuada e coesa política de edição académica em torno da banda desenhada, quase sempre relacionado com a Academia num sentido restrito: isto é, editando-se “papers” que nascem no seio de uma disciplina, um congresso, um encontro, uma solicitação editorial, ou estudos de mestrado ou doutoramento, uma resposta a uma tese, actas oficiais, um estudo pessoal de um membro desta ou daquela universidade... (não penso que só possam surgir contributos “académicos” (num sentido intelectual) de pessoas inscritas oficialmente em instituições de ensino; quantas vezes poderemos recorrer das palavras iluminadas de outras pessoas...) É nesse espaço de referências que surgem estes três livros, que apresentarei sucintamente, como não pode deixar de ser, e que servem apenas para despertar o interesse, aos que não o seguem, por um território em contínua construção.
No entanto, uma pequena nota antes disso; o que vou dizer a seguir é apenas do foro da intuição e de uma leitura generalizada, que poderá estar informada por erros da minha parte, uma percepção enviesada, e até mesmo preconceitos, e faz mesmo parte de uma discussão em curso: ao passo que eu vejo a maior parte dos livros publicados pelos autores mais conceituados e famosos que discutem a banda desenhada na Europa (por exemplo apenas, Bruno Lecigne, Serge Tisseron, Benoît Peeters, Thierry Groensteen, Harry Morgan, Pascal Lefèvre, Jan Baetens, entre outros) a responderem-se uns aos outros, criando de facto um espaço de discussão e reflexão em torno da banda desenhada, nos Estados Unidos quase todos os novos livros criam um novo espaço ab ovo, como se não tivessem existido materiais anteriores (o maior pecado de um autor como David Carrier), ou então pura e simplesmente aplicando teorias e teses existentes numa área de estudo e aplicando-a, como se fosse um kalkito, na banda desenhada (é o caso de Geoff Klock com o How to Read Superhero Comics and Why). Isto é, há livros fundamentais e excelentes, como os de Joseph Witek (que já aqui citara) ou de Donald Phelps, para citar dois somente, mas é raro que se citem entre si. Cada um destes autores parte da sua área correspondente – Sociologia, História, Inglês/Literatura, Estudos Culturais, Estudos Pós-Coloniais, Antropologia, etc. – e utiliza a banda desenhada como território para os seus instrumentos específicos, mas não lidam propriamente com o “espaço de discussão” a que me referi acima. Tudo isto pode ser uma fraqueza como um ponto forte da presença da banda desenhada na Academia, não estou seguro de qual; significa de certeza, porém, que ainda há muito a explorar.
Arguing Comics. Literary Masters on a Popular Medium (University Press of Mississippi). Este livro é uma antologia que reúne textos de autores famosos por razões de terem sido fundadores de um campo de estudos (o caso de McLuhan ou de Rosenberg, por exemplo), por serem escritores de renome (Dorothy Parker, Thomas Mann, e.e. cummings) ou por ambas as razões (Umberto Eco); ainda está presente um autor que tem uma obra considerável especificamente sobre a banda desenhada (Donald Phelps). O que isto representa, na esmagadora maioria dos casos, é uma espécie de apelo às autoridades. Nem todos os textos aqui reunidos são “positivos” em relação à banda desenhada, uma vez que se mostram os dos “pessimistas” da cultura de massas (esse termo é, à partida, desde, concertadamente, Ortega y Gassett e Siegfried Kracauer, pejorativo); outros são defesas integradas de toda uma nova leva de linguagens artísticas novas (Seldes e o seu The Seven Lively Arts ou mesmo pequenas notas de fã (como no caso de Dorothy Parker a propósito do Barnaby de Crockett Johnson). Alguns dos textos eram relativamente acessíveis ao público contemporâneo, tendo em conta as reedições da obra de Umberto Eco, ou de McLuhan, mas outros casos eram apenas reservados aos cultores de um artista (os leitores de Masereel conhecerão o texto de Thomas Mann, os de Steinberg o de Harold Rosenberg), mas a esmagadora maioria ou estavam dispersos ou eram pura e simplesmente obscuros. Tal como em outros casos de colecções completas, como as dos Peanuts, de Prince Valiant, de Gasoline Alley ou de Popeye, ou de experiências menos imediatas, também esta antologia presta um serviço de recuperação da memória, neste caso o de um tipo de reflexão pausado e dialogante com outras áreas, revestido de formas e atitudes diversas, mas todas elas contributivas para uma inscrição da banda desenhada no concerto das nações das artes.
The Education of a Comics Artist (Allworth Press). Coleccionando para cima de sessenta textos, este livro tenta mostrar das mais variadas perspectivas o que sé necessário ou útil em termos de aprendizagem e desenvolvimento de trabalho para um artista (ou aspirante a) da banda desenhada. Todos os campos são tocados, desde a escrita ao desenho, à estruturação das intrigas a desenvolvimento das personagens, da forma como se deve fazer uma proposta aos desafios da edição, passando por pequenas resenhas gerais sobre as “cenas” da Europa, do Japão, de partes dos Estados Unidos, e por todos os géneros da banda desenhada (para revistas ou para jornais, políticos ou infantis ou de aventuras, das tiras às graphic novels). Inclui ainda exercícios e apontamentos para workshops, aulas e bibliografia fundamental (na opinião dos contribuintes). Nem todos os textos são sérios, apesar de serem curtos e criados para uma rápida leitura ou consulta; não são sérios pois em vez de se revestirem de uma oportunidade de iluminar, aconselhar ou mesmo apontar uma direcção (ou mais) possível, acabam por se servir do tempo de antena para doutrinar e impor uma visão limitada das coisas (é o que acontece com Craig Yoe, por exemplo); noutros casos (como na entrevista a Scott McCloud) avançam-se teses generalistas mas que de facto instituem um bom ponto de partida para pensar. Algumas entrevistas e artigos tornam esta colecção num objecto não só heterogéneo mas rico, e mesmo que não se encaixem num todo coeso (parte da riqueza a que me refiro), permitem-nos uma breve visão para as atitudes ou campos dos autores envolvidos (Satrapi, Ware, Peter Blegvad, Kim Deitch, Art Spiegelman, Dennis O’Neill, Will Eisner, etc.). ainda a salientar a presença de textos de investigadores ou estudiosos deste campo que merecem desde sempre a atenção indivisa dos interessados: Todd Highnite, Leonard Rifas, Bart Beaty, Dan Nadel, Trina Robbins, Tom Spurgeon...
Comics as Philosophy (University Press of Mississippi). Finalmente, temos um volume o qual foi construído totalmente por convite. Lançado o desafio da parte do editor, Jeff McLaughlin, toda uma série de indivíduos relacionados com uma ou outra universidade (alguns já formados, outros estudantes ainda, uns com doutoramento, etc.) para elaborarem um pequeno ensaio que combinasse a área de filosofia em que estivessem envolvidos ou mais familiarizados e o objecto de estudo da banda desenhada. Não é que não existam aqui “papers” interessantes e até iluminadores, mas a esmagadora maioria deles, senão todos, são precisamente o que esta minha descrição deixa entender: um pequeno exercício de cortar-e-colar de teorias preexistentes, correntes filosóficas fortes e compaginadas com um pensamento aplicado a questões várias (a compossibilidade de Leibniz, o auto-conhecimento platónico, o existencialismo de Sartre, questões éticas, políticas e sociais do mundo real), sobre o mundo criado pelos “livros aos quadradinhos”. Na maior parte das vezes, o que acontece é, a meu ver, ou uma visão muito pouco elaborada, ou ideias cujas consequências não são exploradas de um modo cabal - é o caso do ensaio do próprio McLaughlin que aplica a ideia de mundos possíveis de Leibniz no famoso “arco narrativo” da Crise nas Infinitas Terras da DC Comics; julgo que é pouco explorado pois um dos aspectos da existência da compossibilidade na DC é precisamente a sobrevivência da memória das leituras passadas (presentes e futuras) mesmo dentro dos contínuos “rearranjos” e “modelarização” do “Universo DC”... – ou então o levantamento de questões que apenas superficialmente parecem profundas – a reacção dos super-heróis face ao 11 de Setembro, por exemplo – mas que, sendo ficção, não poderão ter o mesmo peso ético do que as nossas atitudes reais, tangíveis e consequentes de “cidadãos do mundo”. A grande excepção, que de facto pela sua leitura político-filosófica (ou melhor, pela filosofia da política), acaba por re-iluminar a obra em questão, e o único caso de “close reading” de todo este livro, é o ensaio de Pierre Skilling intitulado (traduzo) “O Bom Governo Segundo Tintin. Viva a velha Europa?”, em que se estuda a aparente predilecção da famosa personagem, e consequentemente do seu criador, por uma monarquia constitucional moderada e tolerante, em detrimento de outros sistemas políticos. Como detractor de todos aqueles que vêem a banda desenhada como instrumento acéfalo de propaganda (seja ela de qualquer sabor partidário), este pequeno estudo mostra como uma atenção aos discursos reais que se desenvolvem nas suas páginas podem antes ser do sinal contrário às expectativas mais imediatas, e de modo positivo.
Belos livros! Penso que a forma mais indicada de olhar a BD e reflectir sobre ela é partir de dentro para fora; ou seja, relacioná-la com outras áreas de conhecimento. Demasiadas vezes a BD é suprimida, às vezes por culpa própria, mas gostava de ler um artigo que pensasse nos caminhos que esta arte que tanto gostamos pode, ou deve, tomar para progredir, o que é sempre um exercício ingrato porque a arte, seja ela qual for, enfim, nunca progride: transforma-se em outra.
ResponderEliminarEm suma, seria interessante perceber como as mudanças consecutivas no campo literário têm afectado, e afectam, a realização/edição da banda desenhada. Ou se a BD está imunizada por bons anticoprpos contra a acção de orientações de mercado, de gostos, etc. Um pouco como as séries televisivas, que são outro fenómeno cultural de entretenimento sempre em rápida mutação de registos.
D.