15 de janeiro de 2007
Un Perro (...). Marco Denevi e Max (Media Vaca)
Marco Denevi é um escritor argentino, o qual, baseado numa das mais famosas gravuras de Albrecht Dürer escreveu um texto incansável, sem pontuação, alucinado e circular, uma espécie de diatribe contra a guerra. Sem pontuação, mas extremamente ritmado, e que mergulha precisamente o melhor possível no ritmo (ou arritmia, ou ritmo mecânico, se nos recordarmos do texto de Charles Chaplin) da guerra para devolver-nos o seu mais profundo absurdo e vazio. A Media Vaca, no seu continuado e belo programa de produzir talvez uma das mais belas colecções de sempre de livros ilustrados, convidou o famoso artista espanhol Max para fazer uma série de ilustrações, acabando por se editar este pequeno caderno da colecção “grandes y pequeños”. É curioso este nome de colecção, pois lança-nos novamente na discussão do que será o “pequeno” e o que será o “grande”, envolvidos que estamos num jogo intricado de devoluções e implicações entre textos e imagens, imagens e textos, sem que possamos encontrar o fio à meada nem o princípio de um fio desenvencilhado.
Do pensamento alegórico da Idade Média, que se expressara ou em artes efémeras ou monumentais, e com o advento do livro impresso, que permitia uma aproximação equilibrada entre essas duas opções, emergiram muitas obras dedicadas não só à transitoriedade da vida (sic transit gloria mundi) como aos aspectos ora absurdos da vida (Das Narrenschiff) ora à democracia da morte (a Tontentanz ou Danse Macabre, a “Dança dos Mortos”). Deste último ciclo, ou tema, surgiram muitos livros, feitos de ciclos de imagens que, não tenho a mesma esquemática da banda desenhada, podiam ainda assim ser lidos através de um princípio quer sequencial quer narrativo, ainda que mais livre... Para os balizar, poder-se-ia falar de Hans Holbein a José Posada, passando por Frans Masereel, Lynd Ward e até Eddie Campbell (com o The Dance of Lifey Death da série Alec). Se nos recordarmos do que se discutiu a propósito do livro de Max Tilmann, recordar-se-ão de termos falados dos livros, também de ciclos de imagens, que passavam pelos corpos da guerra, de Jacques Callot e de Goya. Este pequeno caderno, que apresenta 15 ilustrações de Max (quase todas ocupando duas páginas, e curiosamente concentradas no início do livro, só depois se seguindo o texto, rearranjando as prioridades e distribuições clássicas entre texto e imagem nos “livros ilustrados”), e ainda um poster que recria a gravura de Dürer, pertence de imediato a essa família de livros cuja natureza, vivendo sobretudo das relações que as imagens estabelecem entre si, criando uma espécie de entrançamento (Groensteen) multímodo, e atingindo de um modo feliz a ideia de narrativa, nem que seja apenas, ou precisamente, pela sua própria “ideia de narrativa”. Paisagens de combates tidos, momentos imediatamente a seguir a lutas, campos em que a morte colhe os brinquedos que prefere (também uma revisitação d’O Triunfo da Morte, portanto), os enforcados, os corvos, e, centralmente, o cavaleiro que retorna, o cão que o observa e se tenta aproximar (ou afastar?), e a sombra permanente da morte... Numa imagem, um cavaleiro, ou o cavaleiro, acaba de decepar um seu inimigo. Às costas de cada um dos combatentes, dois esqueletos, duas mortes: a que está sobre o vencedor parece ter uma expressão de surpresa e desagrado, a que está sobre o morto parece gozar com a primeira, muito alegre. “Quem perde, ganha...”, não será essa a expressão sussurrada pela Morte nos campos de batalha? Numa outra, apresentada aqui em baixo, vemos um imenso castelo, que ocupa uma das metades da ilustração (uma página) contrapondo o vazio da outra metade (e outra página; Max pensa muito bem estas distribuições). Aos pés do castelo, vemos escadas, uma catapulta ou manganela (obrigado, Príncipe Valente!), um aríete... O céu parece sereno, um fim de tarde de Verão, talvez, silencioso até, aparte os corvos que alçam voo do outro lado do cerco. No centro dessa imagem, vê-se uma pequena mancha. Será um homem? Um cão? E que faz essa criatura? Está a cair do castelo sobre os sitiadores, uma espécie de sacrifício fútil (mas “honrado”)? Ou estão os cercados a “devolver” algo indesejável? Ou terá sido catapultado pelos sitiadores para dentro das muralhas, um aviso, um ataque de guerra biológica à antiga, uma vingança?
De longe, tudo parece sereno e nada se inscreve nem num campo nem no outro. Há apenas a ideia de que aquela mancha no desenho, signo do único ser humano visível – e mesmo assim, na incerteza – está ali apenas para uma coisa: morrer. Dürer, Denevi e Max sabem-no, e é o testemunho deles que nos impedem de nos voltarmos a esquecer disso.
Mais um comentário à margem do post:
ResponderEliminar"O 13º PASSAGEIRO"
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