O que escrevi anteriormente sobre esta revista mantém-se tal qual, ainda mais reforçado neste último número, que tardou mas que se justifica pela transformação da publicação em termos de tamanho, de grafismo, de fôlego – e hélas!, de preço.
Este número reúne vários artigos em torno de McGuire, sobretudo em torno e incluindo a sua seminal banda desenhada experimental Here, de que já falara neste blog aquando da McSweeney’s 13 e a antologia de Brunetti. Aos poucos, temos a confirmação de uma ideia: não é necessário ser-se um autor profícuo, ou ter “livros” para se ser, verdadeiramente, um autor de banda desenhada, e até um excelente autor (ou melhor, no caso de McGuire, um autor de uma magnífica banda desenhada). Para além de outros artigos mais ou menos de territórios da história – um outro artigo de Smolderen sobre a história e desenvolvimento do balão (e dos seus antecessores) torna-se desde já leitura obrigatória para o estudo da História da Banda Desenhada –, e de “colecções” de ilustrações, fala-se de Drew Friedman, de S. Clay Wilson, de Jim Starlin, de Anke Feuchtenberger (tudo autores que atravessam várias tipologias de equilíbrio entre o “popular” e o de autor “de culto”, mas aqui vendo as suas qualidades respectivas acentuadas. Da última falámos repetidas vezes).
Uma revista sem grandes pirotecnias laterais, mas uma certeiríssima direcção nos assuntos que apresenta, na sua habitual saudável convivência, que nunca é demais apontar como excelente, pertinente e inteligente política editorial como poucos casos.
Mas a verdadeira surpresa deste número, uma surpresa que acalenta repercussões a nível intelectual, de investigação, e mesmo emotivos, está na “oferta” de um pequenino livrinho, independente, oferecido com a edição da Comic Art: um livrinho de Seth, intitulado 40 Cartoon Books of Interest.
Este pequeno livro é, portanto, uma espécie de apêndice. Mas fosse a Comic Art menos interessante do que na verdade é e quase se diria que o valor da compra estaria totalmente neste singelo compêndio. Estão ambas ao mesmo nível de entrega, sem dúvida alguma. Para os leitores de Wimbledon Green (e da saga de Seth em torno do etéreo cartoonista Kalo em It’s a Good Life if You don’t Weaken), se dúvidas ainda houvesse de que o “maior coleccionador de comics” do mundo era uma faceta do próprio Seth, o seu autor (sem querer com isto fazer uma afirmação abarcadora de que todas as personagens são sempre facetas do seu autor, no que não creio), este Quarenta livros de cartoons dignos de nota (tradução livre, minha), dissipá-las-ia.
Como o próprio Seth admite, esta pequena lista – que apresenta os livros mostrando as capas (infelizmente, diminutas e a duas cores apenas), uma ou duas páginas do anterior, informações bibliográficas/bibliómanas q.b., e um pequeno texto não meramente descritivo mas opinativo de Seth – não é um conjunto de obras-primas, nem de “os melhores”, nem de “jóias perdidas” (se bem que esteja mais perto desta última categoria). De modo algum. É pura e simplesmente um grupo de quarenta livros que Seth tem e que aprecia, e de que deseja partilhar connosco o seu conhecimento. Não sendo opções imediatamente óbvias, por isso “of interest/dignos de nota”, isto acaba por ser o que os americanos chamam de Treasure Trove, e nós de um grupo de “achados”. Por outro lado, poderíamos ir por uma forma muito particular de fazer História, que é aquela garantida pelas Wunderkammer, os Gabinetes de curiosidades. E é disso que se trata aqui (limitado, todavia, aos livros ilustrados, de cartoons, de banda desenhada...).
Um dos problemas de que a banda desenhada sofre, a meu ver, e repito-me de outras ocasiões, é a sua falta de memória estrutural. Isto é, ao passo que os cultores das outras artes se movem num espaço fluido de referências anteriores, que podem muitas vezes alcançar os possíveis “pontos originários” da arte em questão, e essa memória menos oculta acaba por estender os seus poderes e formas nas novas obras do presente, a banda desenhada vive numa permanente crise de silenciamento do que precede os nossos próprios dias. Quer dizer, há muitos autores, escritores, investigadores ou simplesmente leitores atentos que navegam por essa História, que têm em mente essas referências, mas tal é fruto de uma entrega muito especial, e não parte da inércia da própria arte: essa, bem pelo contrário, é “desmemorada”. As razões são variadíssimas, desde a sua especificidade sociológica (sendo limitada a acontecimentos fugazes e transitórios das sociedades em que se inscreviam, passou depois a uma dedicação quase exclusiva à estupidificação do gosto e à infantilização dos públicos, só muito recentemente libertando-se para territórios mais vastos de potencialidade), desde a sua natureza física (limitando-nos aos trabalhos em papel, as edições tinham como fim a sua leitura imediata, passagem a um segundo proprietário, e então o oblívio), a inexistência de políticas de reedição contínua, coerente e relevante, a especulação financeira despoletada pela raridade e a avidez dos coleccionadores, e, uma espécie de corolário, a sua generalizada falta de legitimidade enquanto “bem cultural” respeitável ou a, percebida “de fora”, incapaz de abarcar o peso da existência do mundo como as outras artes (não se conhecendo Masereel, Tsuge, Neaud, Baudoin, não se pode dizer isso taxativamente).
Outro problema é o da partilha e da transmissão das gerações mais velhas para as mais novas. Façamos uma generalização, já que é nelas que a memória colectiva se forma, e não nas experiências individuais, que dela poderão eventualmente escapar. As primeiras, no que diz respeito à banda desenhada, tornam-na num todo que representa um momento cristalizado nas suas infâncias (que se podem estender durante décadas), um momento em que a (sua) percepção do mundo era simples, os divertimentos lineares, e as certezas sólidas; por isso falam de “idades de ouro”, “de queda de valores”, etc., e, como as suas percepções do mundo não acompanham as da banda desenhada, ou melhor, como acabam por querer penhorar a banda desenhada nas suas infâncias e mundos protegidos, não a querem ver tomar outras formas, temas e linguagens, e acabam por julgar a produção contemporânea a partir desses valores obsoletos, logo, não podem deixar de a ver como “fraca”, “imoral”, ou outros ataques. Ao envelhecer, perdem a saúde, e essa amargura cai sobre o que continua vivo e com verve. As segundas, sendo jovens, apenas conhecem uma velocidade, acelerada, e não têm tempo de ponderar, de reflectir, de “perder” tempo em olhar para trás e procurar descobrir o quão sólido era o mundo antes dos seus próprios passos. Têm uma interminável, muitas vezes indómita, sofreguidão em se querer expressar pelos seus próprios medos, apaixonam-se subitamente pelas “novidades” e “invenções”, descartando tudo o que os precedeu como “passado”, acabando muitas vezes por, através dessa “cegueira histórica”, não entenderem o quão inócuas e ocas são as suas tentativas de “transformar as coisas”.
A única solução é, indubitavelmente, a partilha inteligente, o cruzamento de experiências, um contínuo diálogo que deve ser sempre atento e, acima de tudo, aberto a ser, a si mesmo, surpreendido. Porque julgam que nesta capa vemos dois homens (de idades diferentes) a ladear uma criança, todos lendo o mesmo livro? Não se trata da inanidade de “dos 7 aos 77 anos”, como se fosse realmente possível uma linha homogénea que comunicasse a ambos (normalmente pautando-se por baixo). Mas de uma leitura partilhada. E tanto podemos entender serem os mais velhos, de olhos bem abertos para o mundo, mostrando à criança um livro favorito, como ser o miúdo, alegre e de olhos cerrados de orgulho, dando a conhecer aos mais velhos uma descoberta sua...
Encontrarão aqui referências a autores famosos – Saint-Ogan, Steinberg, Jules Feiffer,James Thurber, Caran D’Ache, Lat, Ronald Searle. E se não os conhecerem, não é por uma estratégia cínica minha, em que digo “famosos” aplicando-o a nomes obscuros para diminuir a inteligência do leitor e mostrar-me como um connoisseur: são referências, de facto, banais (ou deveriam sê-lo). Outros menos imediatos, alguns ainda totalmente desconhecidos – e quase, quase, diríamos, negligenciáveis. Abraçam-se aqui vários períodos: o livro mais antigo é de 1854, do grande e influente ilustrador Richard Doyle – os fãs de Charles Vess saberão o quanto -, e o mais recente de 1988, um fanzine de uma criança terminalmente doente, Patrick Seguin, intitulado Crime-Busters – o de Wally Wood é um “perdido” de 81). Vários estilos, várias escolas, vários públicos, várias forças, etc., mas tudo unido não só pela posse de um coleccionar particular, que impõe um seu idiossincrático “tédio silencioso da ordem”, como diz Walter Benjamin a propósito das colecções de livros, já arranjados nas prateleiras, mas pelo interesse, calmamente apaixonado (o que não é um paradoxo), de Seth sobre estes livros. Ainda recorrendo ao texto de Benjamin, “Desempacotando a minha biblioteca”, no qual se explicita a psique do coleccionador como alguém que encerra os objectos coleccionados por si num “círculo mágico” que logo se torna empedernido, é que nos apercebemos de que nesta livrinho de Seth se observa precisamente o movimento contrário ao do coleccionador – sobretudo no que diz respeito aos particulares à banda desenhada, com os seus fetiches muito próprios – pois Seth, como vemos, partilha este livros como pode, através de um outro (este mesmo) livro. E seguramente lançará muitos dos seus leitores – este pelo menos já o fez – nos mercados, tangíveis e online, em buscas com uma nova “lista de compras”.
Olá Pedro,
ResponderEliminarOnde compraste? Na Bd-Mania? Através da Amazon?
J. Marmeleira
Ois,
ResponderEliminarSorry, mas não costumo fazer publicidade... Digo que comprar online sai mais barato (mas mais lento); em todo o caso, há à venda em Portugal, mas só em locais especializados (e se calhar já voaram os exemplares).
Abraço!
P