14 de junho de 2007

Tintin and the Secret of Literature. Tom McCarthy (Granta)


É inevitável que seja a obra de Hergé aquela que, no espaço europeu, suscita uma cada vez maior crescente bibliografia. Quer pelas datas que se tornam em comemorações, quer pelo desenvolvimento de uma distância em relação à obra. Não obstante o desejo dos fãs e daqueles que leram Tintin num momento “dourado” das suas infâncias, essa série significará cada vez menos para os novos leitores da contemporaneidade. Torna-se assim uma das acepções de “clássico”, algo cujo momento de auge já passou e nos fala numa língua antiga. Mas essa distância permite que se abra um espaço de releitura. Seja pelo lado mais comercial, pelo de operações de cunho estético misturado com campanha de charme, como a exposição no Pompidou, ou, o que nos traz aqui, por leituras analíticas e críticas, de uma desconstrução forte e sopesar da obra. (Mais)

Dois livros marcam esta discussão, um in praesentia, o livro de Tom McCarthy intitulado Tintin and the Secret of Literature, outro in absentia, o de Ana Bravo, A invisibilidade do género feminino em Tintin – A Conspiração do Silêncio, a que remeterei os leitores a um artigo futuro.
Walter Benjamin, que pensou de uma forma contínua sobre a memória, mas sem a sistematizar, indicou, na Crónica Berlinense, que esta actividade humana implica uma “capacidade de interpolações sem fim naquilo que foi”. De certo modo, é esse o papel de uma leitura forte: ela deve reler a obra conhecida e obrigar-nos a nós, leitores da primeira (ou segunda, terceira, etc.) leitura, a retornar à obra para a ler de novo sob esse novo prisma. Ou seja, “aquilo que foi” está permanentemente a transformar-se, a cada nova leitura (forte, nova) uma “coisa que é”. É nesse sentido preciso que penso ter a obra de Ana Bravo falhado, e a de McCarthy ter acertado. Mas não julguem que o próprio autor inglês não reconhece que uma leitura pode impedir a outra. E este livro apresenta precisamente isso: uma leitura. Não é movido propriamente por uma tese central a ser demonstrada nem sequer pretende iluminar o “génio” de Tintin: tão-somente apresenta toda uma série de interpretações, surpreendentes por um lado, assombrosas por outro.

Convergem nestas páginas uma close reading dos aspectos narrativos (o que não descura a presença imagética, obviamente) da obra de Hergé, dados “duros” da biografia de Hergé tal como apresentados pelo mesmo, por Sadoul (entrevistas), Tisseron (psicanálise indirecta), Assouline (reconstrução), interpretações tintinófilas (Michel Serres à frente do pelotão), e toda uma bateria de conhecimentos importantes no que diz respeito à (re)interpretação dos signos presentes na obra (Freud, Sartre, Baudrillard, Debord, etc.). Não deixa de haver saltos destemidos na interpretação. Mas o seu objectivo não é providenciar-nos com uma “verdade”, mas antes com chaves possíveis de descodificação das criptas que, de acordo com a luz lançada por McCarthy sobre Tintin, não param de surgir em cada uma das “aventuras”... Todavia, o autor pergunta-se se a emergência à superfície da obra de todos os elementos biografáveis de Hergé sob a forma de sintomas (na acepção técnica da psicanálise) será “uma simples autobiografia críptica também? Não será também sobre a natureza, a corrupção, a nossa própria condição no globo e no tempo?” (pág. 89). Estas questões surgem pois “ler através de uma qualquer situação fixa não apenas elimina outras que estejam implicadas como, mais fundamentalmente, perde a constante re-infecção que se dá ao longo da obra, como a obra” (idem).

McCarthy obriga-se (e obriga-nos) a uma leitura constante, obsessiva, recorrente, de todos os signos, como signos precisamente, e depois interroga-os, violentamente quando necessário a confessarem todos os significados que encerram, a despojarem-se, uma a uma, das camadas que o compõem. Utilizar a palavra “Inquisição” é apropriado. Não se trata aqui de um direito dito romano, onde se é inocente até provado culpado. É-se culpado à partida, o que nos permite torturar o acusado até à confissão do seu crime e pecado. Se não seguirmos atentamente o método de leitura de McCarthy, uma metodologia de fortes associações intelectuais, filosóficas e bebendo de muitas fontes (a leitura do Sarrasine de Balzac tornada famosa em S/Z é o modelo, repetidamente citado), perder-nos-emos das razões dessa tortura e poder-se-á pensar estarmos defronte um livro “alucinado”, uma demanda por “ilusões” abusivas... É quase como se recusasse peremptoriamente seguir o que o próprio Tintin quer verbalizar, nesta "prancha-chave" (para utilizar uma expressão de Fresnault-Deruelle) de As Jóias de Castafiore (largamente analisado neste livro, mas a imagem foi retirada deste blog) Mas o fundo consolidado é que esta leitura é, repito-o, forte o suficiente para nos obrigar a nós a reler Tintin. Eis uma fortaleza.

Procura-se aqui uma ordem do tráfico entre o figural e o real, o simbólico e o metafórico, o sintoma psicanalítico e o lapso linguístico, o icónico e o caprichoso. A negociação é complexa, difícil, desafiadora, perigosa mesmo, por vezes, como disse, violenta. Este termo “negociação”, que surge no livro, é crucial. É um termo desenvolvido por Gramsci na sua teoria da hegemonia, na qual se dá continuamente uma luta entre os grupos dominantes e subordinados da sociedade, o que pode facilmente ser transposto para a esfera cultural. Existem os sistemas de produção, mas fazem-se posteriores leituras que invertem o “sinal” dessa primeira obra: essa inversão – como um famoso case study dos aborígenes australianos tomarem a personagem “Rambo” como símbolo da luta contra a hegemonia branca do seu país, não-prevista no filme – é um dos frutos da negociação. É como um jogo-da-corda, portanto, onde a tensão, quando é idêntica em ambos os pólos leva a uma quase total inércia, mas que a nível microscópico leva a uma tempestade oscilatória (do movimento do pêndulo de Tournesol/Girassol às catástrofes da sua ciência). Não é uma questão de espoletar um progresso da leitura (saber mais ou melhor), mas sim de desdobrar os significados latentes, verificar as potencialidades, abrir novos caminhos de interpretação, mesmo que se chegue (parafraseando o tema do capítulo 4) a uma “castração de sentido”.

E mais, e aqui reside a força da argumentação (livre? ou pelo contrário delimitada no espaço possível da obra?) de McCarthy: tudo o que ele afirma, explora, espoleta, é justificado através da obra. Mesmo quando a interpretação nos parece abusiva, exagerada, falha, alucinada demais, cómica até (a esmeralda de Castafiore é o seu clítoris, perdido e restaurado), o autor dá-nos a “prova” nos signos manifestos nos livros de Hergé. McCarthy ceita pistas exteriores (Tisseron ou Serres, por exemplo, uma leitura de um ensaísta, um dado biográfico), mas sem a deixar sobreviver como um dado trivial ou boutade (um dos problemas que encontro no livro de Ana Bravo). Pelo contrário, persegue logo o seu sentido real na obra. E descobre-os.

Apenas um exemplo. Quase todos os interpretantes apontam Tintin como uma espécie de avatar de Hergé. Mas o que me parece se passa é como o fenómeno do parentélio (repesco uma metáfora aquando da discussão de Paul Pope), onde o sol parece brilhar onde não está realmente no espaço. A força gravítica do biografismo-tornado-matéria encontra-se sobretudo em Haddock, como que através do dédoublement discutido por Paul de Man (citado), um desdobramento do autor para um espaço de ironia. Como? Através de toda a história familiar que vai sendo criada, as suas atitudes para com as restantes personagens, para com os eventos, as suas contínuas transformações e adaptações às circunstâncias. E Tintin aparece sobretudo como um signo de silêncio – até a sua representação é “silenciosa” – tornando a capa de As Jóias de Castafiore numa alegoria quase esotérica, quase alquímica, um emblema harpocrático que nos convida ao desvendamento. A aceitação destas ideias (por nós) é um aspecto quase secundário em relação à força dessa estruturação do pensamento. A recusa terá de passar por uma outra leitura forte que desmonte, e desminta, a primeira.

Não é por acaso que para a capa deste volume tenha sido escolhida uma ilustração de Jochen Gerner, exercício de ultra-infografização da obra de Hergé, e que repete o que se havia passado no seu T.N.T. en Amérique, de 2002. Este fora um álbum experimental que “reduzia” o álbum Tintin en Amérique à presença mínima de signos (verbais ou icónicos, transversais ou directos) flutuando num fundo a negro, mas mimando a par e passo cada uma das pranchas do livro original. Não é esse um gesto inusitado frente à obra de Hergé, já que foi o próprio quem se dedicou, sistematicamente, à reescrita (e redesenhar) dos seus álbuns à medida que novas versões eram pedidas pelas novas décadas. Gerner simplesmente sublimou esse gesto, já existente na obra original (onde está o original? O que significa “original” num trabalho de banda desenhada que se apresenta em tantas “versões”? e quase nos remete à questão do que significa “original” na banda desenhada, que existe pelos seus modos e métodos de reprodução e reprodutibilidade...). Gesto que, como vimos, não deixa de imitar os movimentos mais íntimos da memória humana.
nota: agradecimentos a Benjamin Brejon, por me ter colocado na senda desta leitura.

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