O princípio de série impera sobre os trabalhos de André Lemos. É cada vez mais raro que Lemos retorne às formulações mais clássicas da banda desenhada – onde, diga-se, jamais esteve na verdade, mesmo com as pequenas histórias na Lx Comics, no seu volume Quem é este homem? (Bedeteca de Lisboa), em vários fanzines, e na mais recente aventura da Glomp – para cada vez mais se deixar escapar para áreas mais longínquas mas com ela ainda por centro; como se a banda desenhada fosse um mecanismo rotativo, um carrossel aberto, centrífugo, que o impelisse para lá dela mesma. Nesse sentido, algumas das publicações que tem dado à estampa ele mesmo ou convidado a cumprir por outros editores aproximam-se de livros de desenhos em série (mais do que de “uma série de desenhos”) que têm feito a história deste campo expressivo, e sobre cujos nomes supernos, quer histórica quer contemporaneamente, temos insistido reiteradas vezes – Holbein, Goya, Hokusai, Klinger, Masereel, Dix e Grosz, Bruno Schulz, Ernst, Tiago Manuel, Tommi Musturi, de um grupo tão imenso quanto incoeso (uma mais-valia, não uma fraqueza).
Pode-se tentar configurar princípios específicos que regem a organização serial de cada uma dessas publicações, princípios que tanto podem ter de descritivos e taxinómico como revelar de interpretativos. Algumas destas características são mantidas por outro tipo de intervenções que Lemos vai fazendo um pouco por todo o lado, o que o torna o menos famoso mais internacionalizado artista português desta área artística: menos famoso das massas colectoras da “bedê = aventura”, mais internacionalizado por encontrar canais de edição, expressão e distribuição fora do espaço estreito que o destino lhe coube. De novo, repita-se a sua participação na antologia finlandesa Glomp, a elaboração da capa para o jornal ilustrado & de banda desenhada Kutikuti, do mesmo país, e ainda alguns desenhos no colectivo Weekend, editado em França pela Stratégie alimentaire. No entanto, atenhamo-nos apenas a três publicações individuais.
Family Portraits (Opuntia, 2007; capa ao lado), que ainda tem por título oculto os nomes das famílias apresentadas, os Ruins, os Plastic e os Tornadoes, apresenta retratos de vários membros das ditas famílias, acompanhados por textos mínimos, uma frase que, sucinta, nos revela uma fantasmagoria qualquer da personagem em questão, fantasmagorias que são objectificações quer dos apelidos quer das obsessões familiares. Uma certa maneira de dizer que “o sangue é mais forte que a água”?
Cirque Intraveineuse (editado em França por Francis Laporte Éditeurs) parece ser, destas publicações, a mais livre de canais temáticos. Encontramos figuras em diálogo (por vezes, explicitamente), sobreposições de duas criaturas num mesmo corpo, combates e contraposições. Algumas dessas figuras são acompanhadas pelos jogos verbais, que mais não são do que um apurar do uso da linguagem, cada vez mais objectificada, a que André Lemos nos tem habituado mesmo nas suas histórias aparentemente mais lineares, com um eixo ou um centro de gravidade (“Kunst Conqueror”, “Fruit of Acceptance”, “Vegan Chicks don’t swallow”).
Word Games (Opuntia, 2007; página ao lado) coloca fora de cena os desenhos e as imagens da maneira mais simples de os entendermos, para os subsumir na presença das palavras (e seus “jogos”), elas mesmo ganhando um estatuto ainda mais forte de imagem (são-no sempre, mas aqui, revestindo-se com as forças da caracterização do “estilo” de Lemos, são-no mais) e passando a ocupar o lugar do desenho. Os jogos são assim não apenas “verbais” nem apenas “visuais” (onde uma palavra assumiria uma forma visual que lhe fosse latente ou contígua), mas jogos verdadeiramente icónico-verbais. Uma maneira muito peculiar de mostrar o que é possível de fazer por uma arte da caligrafia ocidental, uma possível actualização dos tratadistas de caligrafia como Tagliente ou Cresci, mas desta feita – muito contemporaneamente – como Esemplari do Imperfetto scrittore. Nestes jogos visitam-se vários idiomas e conjugam-se termos inesperados (aquilo que nos buscadores da Amazon se chama “SIPs”, “Statistically Improbable Phrases”). Para aumentar o grau de objectificação das palavras, constante característica, com cada zine é ofertado um pequeno crachá com uma das frases impressa, e apenas uma vez. O crachá que me coube diz “Malström flexible”. Como quem diz, existem tempestades que se adaptam a todas as circunstâncias e necessidades...
Pode-se tentar configurar princípios específicos que regem a organização serial de cada uma dessas publicações, princípios que tanto podem ter de descritivos e taxinómico como revelar de interpretativos. Algumas destas características são mantidas por outro tipo de intervenções que Lemos vai fazendo um pouco por todo o lado, o que o torna o menos famoso mais internacionalizado artista português desta área artística: menos famoso das massas colectoras da “bedê = aventura”, mais internacionalizado por encontrar canais de edição, expressão e distribuição fora do espaço estreito que o destino lhe coube. De novo, repita-se a sua participação na antologia finlandesa Glomp, a elaboração da capa para o jornal ilustrado & de banda desenhada Kutikuti, do mesmo país, e ainda alguns desenhos no colectivo Weekend, editado em França pela Stratégie alimentaire. No entanto, atenhamo-nos apenas a três publicações individuais.
Family Portraits (Opuntia, 2007; capa ao lado), que ainda tem por título oculto os nomes das famílias apresentadas, os Ruins, os Plastic e os Tornadoes, apresenta retratos de vários membros das ditas famílias, acompanhados por textos mínimos, uma frase que, sucinta, nos revela uma fantasmagoria qualquer da personagem em questão, fantasmagorias que são objectificações quer dos apelidos quer das obsessões familiares. Uma certa maneira de dizer que “o sangue é mais forte que a água”?
Cirque Intraveineuse (editado em França por Francis Laporte Éditeurs) parece ser, destas publicações, a mais livre de canais temáticos. Encontramos figuras em diálogo (por vezes, explicitamente), sobreposições de duas criaturas num mesmo corpo, combates e contraposições. Algumas dessas figuras são acompanhadas pelos jogos verbais, que mais não são do que um apurar do uso da linguagem, cada vez mais objectificada, a que André Lemos nos tem habituado mesmo nas suas histórias aparentemente mais lineares, com um eixo ou um centro de gravidade (“Kunst Conqueror”, “Fruit of Acceptance”, “Vegan Chicks don’t swallow”).
Word Games (Opuntia, 2007; página ao lado) coloca fora de cena os desenhos e as imagens da maneira mais simples de os entendermos, para os subsumir na presença das palavras (e seus “jogos”), elas mesmo ganhando um estatuto ainda mais forte de imagem (são-no sempre, mas aqui, revestindo-se com as forças da caracterização do “estilo” de Lemos, são-no mais) e passando a ocupar o lugar do desenho. Os jogos são assim não apenas “verbais” nem apenas “visuais” (onde uma palavra assumiria uma forma visual que lhe fosse latente ou contígua), mas jogos verdadeiramente icónico-verbais. Uma maneira muito peculiar de mostrar o que é possível de fazer por uma arte da caligrafia ocidental, uma possível actualização dos tratadistas de caligrafia como Tagliente ou Cresci, mas desta feita – muito contemporaneamente – como Esemplari do Imperfetto scrittore. Nestes jogos visitam-se vários idiomas e conjugam-se termos inesperados (aquilo que nos buscadores da Amazon se chama “SIPs”, “Statistically Improbable Phrases”). Para aumentar o grau de objectificação das palavras, constante característica, com cada zine é ofertado um pequeno crachá com uma das frases impressa, e apenas uma vez. O crachá que me coube diz “Malström flexible”. Como quem diz, existem tempestades que se adaptam a todas as circunstâncias e necessidades...
Há toda uma concatenação de características que impedem alguma vez de nos enganarmos estarmos perante um “André Lemos”, i.e., a identidade dos desenhos é suficientemente marcada e forte para poder de algum modo ser dissimulada. (aqui ao lado, página de Cirque Intraveineuse) No entanto, não é de somenos verdade que existem algumas estratégias que parecem querer almejar algum grau de dissolução dessa mesma identidade como busca de uma permanente vida interna, que se desdobra para fora por multiplicação, que se metamorfoseia numa torção contínua, impelindo a novos movimentos e respirações. Já vimos o que disto toca no aspecto “temático”. Mas reparem-se igualmente nas “técnicas gráficas” e nos “traços”. (Isto é uma forma de procurarmos caracterizar o seu trabalho, não de o determinarmos. A busca e assunção de um certo “estilo” não deve ser visto como um molde ou uma fórmula na qual se irão encaixar todos os futuros - ou passados mas desconhecidos - trabalhos de um autor. Caracterizar significa ser sensível aos caracteres que surgem, aos sinais individuais, específicos, desse “aqui e agora”.)
Family Portraits é composto por desenhos a traço negro, cabeças flutuando numa mancha negra. Os rostos das famílias, apresentados como são tal qual troféus de caça num salão, acabam por se tornar numa qualquer variação de uma escrita – ideogramas, faciogramas - que entendemos possuir algum significado ulterior, mesmo que não o consigamos decifrar.
Cirque Intraveineuse não tem apenas desenhos. Uma vez que é uma publicação totalmente em serigrafia, cada página a duas cores (preto e amarelo, preto e azul, preto e amarelo, ainda vermelho, e sobre papel creme, amarelo e azul), há várias experiências, de emprego de imagens apropriadas, grandes manchas de tinta, colagens, colagens com recortes de papel de lustro, pormenores ou mesmo figuras a caneta de ponta, etc.
Family Portraits é composto por desenhos a traço negro, cabeças flutuando numa mancha negra. Os rostos das famílias, apresentados como são tal qual troféus de caça num salão, acabam por se tornar numa qualquer variação de uma escrita – ideogramas, faciogramas - que entendemos possuir algum significado ulterior, mesmo que não o consigamos decifrar.
Cirque Intraveineuse não tem apenas desenhos. Uma vez que é uma publicação totalmente em serigrafia, cada página a duas cores (preto e amarelo, preto e azul, preto e amarelo, ainda vermelho, e sobre papel creme, amarelo e azul), há várias experiências, de emprego de imagens apropriadas, grandes manchas de tinta, colagens, colagens com recortes de papel de lustro, pormenores ou mesmo figuras a caneta de ponta, etc.
Word Games (capa ao lado), apesar de quase dispensar os valores icónicos – mas não é absolutamente verdade, pois vemos aqui uma nuvem, ali um escorrimento viscoso, um talo vegetal, um broto, pedras, grão de madeira – não deixa de permitir à caneta-pincel (tinta-da-china) uma variação de contornos, de espessuras, de um equilíbrio diferenciado de curvas e rectas, de ocupação da mancha da página, mas ainda assim formando a fantasmática “assinatura” do autor.
A editora Opuntia Books é uma chancela criada por André Lemos para criar os seus idiossincráticos, belos e irrepetíveis zines (capas serigrafadas, numerados e assinados, com pequenos ex-libris e hors-texte, edições limitadas em torno dos 100 exemplares), mas também a aproveita para publicar outros artistas com os quais estabelece afinidades, não temáticas nem formais mas de atitude para com esta arte em particular: Bruno Borges, Sylvain Gérand, Mehdi Hercberg e Frederico (um seu sobrinho, então com quatro anos), havendo ainda planos para muitos outros no futuro. É um retorno a uma manufactura artesanal do objecto livresco, em que todos e quaisquer pormenores da sua factura se tornam não só uma mais-valia como uma obrigatoriedade de ser fruída aquando da sua leitura ou contemplação global. Poder-se-ia dizer livremente “livro de artista”? A nosso ver, sem dúvida alguma.
A editora Opuntia Books é uma chancela criada por André Lemos para criar os seus idiossincráticos, belos e irrepetíveis zines (capas serigrafadas, numerados e assinados, com pequenos ex-libris e hors-texte, edições limitadas em torno dos 100 exemplares), mas também a aproveita para publicar outros artistas com os quais estabelece afinidades, não temáticas nem formais mas de atitude para com esta arte em particular: Bruno Borges, Sylvain Gérand, Mehdi Hercberg e Frederico (um seu sobrinho, então com quatro anos), havendo ainda planos para muitos outros no futuro. É um retorno a uma manufactura artesanal do objecto livresco, em que todos e quaisquer pormenores da sua factura se tornam não só uma mais-valia como uma obrigatoriedade de ser fruída aquando da sua leitura ou contemplação global. Poder-se-ia dizer livremente “livro de artista”? A nosso ver, sem dúvida alguma.
Mas esse termo parece ser reservado para projectos onde se movem interesses económicos mais desenvoltos, não necessariamente mais interessantes nem dignificantes dos autores envolvidos – como, para dar dois exemplos recentes, a re-publicação de Comunidade, um conto do recentemente morto (finalmente “aceite” pela “Coltura” oficial?) Luís Pacheco com requentamentos de Cruzeiro Seixas e um hilariante volume intitulado Artistas Retratam Escritores Que Retratam Artistas pela recentemente aberta livraria Byblos –. Assim sendo, assuma-se “zine” como uma nova denominação bem mais livre e respirando viva que cansadas fórmulas para circuitos fechados (aqui ao lado, página de Family Portraits). Tomando as distâncias históricas, contextuais e económicas devidas, recordam-me estas edições as experiências que muitos dos artistas das vanguardas russas (poetas inclusive) seguiram. Este gesto está em consonância com uma tendência contemporânea, que se espelha nas edições da Imprensa Canalha, de José Feitor, partilhando-se tantas outras afinidades (e projectos em comum), mas que foi sempre apanágio de uma maneira de criar fanzines (expoente em Portugal atingido por João Bragança, com a Succedâneo) e também se repercute em outras áreas mais atreitas à impressão, mesmo que misturada em projecto comercial (o caso paradigmático dos cadernos Serrote).
Com as minhas desculpas, permito-me sugerir, em nome da BD, uma visita e eventuais críticas à posta Apuleio, O burro de ouro - Manara, A metamorfose de Lúcio .
ResponderEliminarCaro Professor Porfírio Silva,
ResponderEliminarJamais terá de pedir desculpas por colocar aqui as suas leituras ou comentários, pois muito me honra a sua presença "virtual" neste espaço.
Apesar de não ser o mais atento leitor de Manara (de que se salvam alguns poucos títulos), este álbum é merecedor de alguma atenção. A desculpa narrativa está em Apuleio, sem dúvida, mas parece-me que Manara é mais devedor de Fellini (penso no "Satyricon" e "Casanova") e de Pierre Klossowski ("Origens cultuais e míticas de um certo comportamento das damas romanas", na Cotovia) do que do romano...
Um bem-haja!
pedro moura
Caro Pedro Moura,
ResponderEliminartomámos a liberdade de fazer uma hiperligação para o seu website, com uma referência num post.
Cumprimentos
paulo ferreira