
Apesar desta imensa linha narrativa central, que alinha as cerca de cinquenta pranchas do livro (que o é, apesar do formato nos remeter mais ao universo de revista, e que pode constituir um factor “comercial” para a invisibilidade deste - e outros - projecto nas enchentes dos escaparates mais conformados e normalizados), há todo um ritmo de staccato que nos remete para as obras anteriores de Teresa Câmara Pestana, nomeadamente o seu longo e saudável Gambuzine, e a dilogia Aqui? Babilónia e Continuamos aqui? Com isto quero chamar a atenção para a construção de uma diegese, indubitável, através do que parecem ser momentos separados em termos temporais e espaciais bem mais intervalados do que sucede na banda desenhada mais normativa. Nesse sentido, remete-nos para todo um universo de discussões de fronteiras entre esse modo apertado de ver a banda desenhada com outras obras que se veriam mais próximas da área da ilustração, ora pelo seu carácter de uma fragmentação maximal que faz emergir um sentido coeso (aproximando-se de Holbein ou Hokusai, de Warren Craghead a algumas obras de Gorey) ora por esse tal movimento pausado mas rítmico de narrar (aproximando-se, desta feita, de Loustal ou José Feitor/Luís Henriques em Babinski).
Uma pequena nota: a possível psicologização da leitura através de um confronto da protagonista com a personalidade da autora pertence a um outro tipo de trabalho interpretativo que não me pertence. Será curioso levantar algumas questões por entrevista, sem dúvida, e do cotejamento com a “personalidade” das publicações anteriores, mais “neuro-bio-psico-quemo-molabilo-sapiens”, ou “cultura escarreta”, para utilizar as palavras da autora, transformada em Postais numa pessoa inserida numa maior serenidade, resultará seguramente alguma leitura de interesse. Mas não é esse o meu papel, repito-o, e falo aqui da protagonista (elemento narratológico) e dos eventos do livro através dos signos legíveis nele inscritos.
O que emerge é um retrato de um encontro. Um encontro entre uma mulher e um lugar, o qual, apesar de ser identificado na sua mais exacta concrescibilidade, o território do Dahomey (hoje compreendendo “parte do Togo, Nigéria e todo o Benin”), surge como metonímia de um outro lugar, que pelos seus contornos vagos se torna metáfora: África. Metonímia, não sinédoque, porque é como se esse Dahomey não fosse meramente uma “parte” de um “todo”, que é África, mas como se a relação fosse de exponencial projecção de fantasmas (quer os dos mortos, da tradição, quer os mais ilusórios, provocados pelo estrangeiro). Por outro lado, a protagonista, diminuída a um “A.C.”, e já que estamos a falar de figuras de retórica relativas aos significados implicados, constitui o que na antiguidade se chamava de inopia (“carência de uma expressão própria”, segundo Lausberg). Ou seja, o que vemos aqui suceder é um movimento paralelo e diametralmente oposto: à medida que a protagonista se “apaga” (se torna sigla, sombra, fantasma) mais assoma uma imagem de África (que, de tanto consumir em seu torno, também se torna igualmente fantasmática). Esse movimento é logo explicitado nas duas primeiras páginas do livro, que parecem opostas: uma explicando o desaparecimento progressivo de A.C., a outra explicando, quase enciclopedicamente, a unidade espácio-temporal (e para além dela) onde se desvendará a sorte da protagonista, o seu mergulhar.
Existem, como se sabe, muitos livros sobre este tipo de encontros, entre o homem-de-fora (o estrangeiro, o forasteiro, o bárbaro) e a nova terra (“nova” para o recém-chegado); e África parece suscitar paixões mais arreigadas que os demais locais, para nós (“nós”, que a ideografia e infografia apelida de “homens” do mundo de Cá). Existem vários graus de entrega e de diálogo, obviamente. Aquando da Cimeira Europa-África, um grafitti de rua rezava o seguinte: “África Minha, o caralho”. Penso que essa frase congrega todo um sentido múltiplo que se pode entender dos papéis que se efectuam para com esse animal mítico que é África. As mais das vezes, não se fala de um país concreto – e as suas pessoas, suas culturas, línguas – já que foram as linhas de tinta dos europeus que delimitaram o espaço de um modo como ele não existia para as famílias que ali existiam. Por isso, fala-se de África, no geral, como se houvesse mais em comum, uma massa uniforme (para não dizer informe, pronta a moldar consoante os propósitos) entre um etíope e um angolano do que entre um português e um lapónio. E esses livros e obras mostram sempre uma distância entre essa África, desconcretizada, descarnada, mitificada enfim, e o visitante. Teresa Câmara Pestana esforça-se por mostrar uma entrega muito profunda de A.C. à sua nova casa, lar, mundo, onde o mergulhar não é o de uma observadora externa, muito menos de uma curiosa ou turista, mas a de uma estudante que pretende atingir uma metamorfose final. Procurada sobretudo através da sua entrada no círculo religioso ali existente, o do yoruba/orixá. E conseguida, afinal, pela sua obliteração absoluta.
Todavia, há ainda pequenas máculas da natureza citada, dessa distância impossível de transpor. Em alguns momentos, a protagonista desvenda essa distância de duas maneiras. Por um lado, facto inevitável, depreende-se, queiramos explicar isso através dos exercícios da auto-ficção, do ligeiro disfarce autobiográfico, do desvio permitido pela criação ficcional, que a protagonista é ocidental (branca?, portuguesa?) e, logo, não cresceu no interior da cultura na qual deseja, não só entrar (através da aprendizagem ou da emulação) mas mergulhar (confundir-se em). Prova: aquando da cerimónia do ebo (rito de purificação, em que a protagonista finalmente estabelece paz e se plasma com o espírito que a persegue), lê-se o seguinte: “O ambiente é no entanto extremamente solene, apesar do ar pouco sério das figuras felinas no altar”. De que deriva esse “ar pouco sério”? De uma verdade intrínseca à cultura vudu, em que o leão e o leopardo são considerados como impossíveis de domesticar e por isso sinal de um poder que escapa às malhas dos homens, da circunstância específica de representação do artista que esculpiu estas imagens, com um humor pessoal? Ou antes da atitude desta “estrangeira” que vê nesta representação – quiçá austera até – laivos de alguma “ingenuidade”? Logo a seguir, quando finalmente os “cavaleiros” (i.e., a pessoa que o espírito, o orixá, “monta”) entram em transe, a protagonista descreve como todos os elementos conjuntos “induzem rapidamente os participantes mais sensíveis a um estado de mente alterado”. A escolha deste termo, praticamente clínico, aceite na literatura que lhe é específica, induz-nos na crença que há uma diferenciação entre esse estado “alterado” de um outro, “normal”. Todavia, num crente (por outras palavras, numa pessoa que está no interior desse sistema de crença, de pensamento, de modo de estruturação do mundo), essa diferenciação dissipa-se, não existe, é um contínuo. Nós, os “de fora”, não entendemos, apenas vemos o contorno, linha grossa, da diferença. O mesmo sucede na nossa própria cultura. Em todas as missas católicas, dá-se um milagre: a transubstanciação. Para os crentes, a hóstia é (torna-se, transforma-se, metamorfoseia-se) o corpo de Cristo, o vinho é o sangue de Cristo; para os não-crentes, não passa de um disco de pão, de uma gotas de vinho. Não há milagre, para nós, os não-crentes. Não tem nada a ver com uma verdade adquirível pela lógica, pela cientificidade, pelo racionalismo positivo. Não se trata de uma simples dicotomia de ser versus não ser. É antes uma oposição intransponível entre crer-se ou não se crer.
Entenda-se, porém, que estas ligeiras diferenciações da protagonista são isso mesmo, ligeiras, mínimas. Quase sempre, o retratista toma alguma distância do retratado. Podem ser uns meros passos, para poder reverter todas as sombras e luz num rosto legível e claro, ou ausentar-se de qualquer ideia de proximidade para poder fazer emergir um panorama. E, seja qual for essa distância, portanto, nós, leitores, somos confrontados – ainda que numa só unidade de espaço e de tempo – com o retratista e o retratado, duas presenças. Contíguas ou sobrepostas, justapostas ou ligeiramente diferenciadas, duas presenças. A protagonista do livro de Teresa Câmara Pestana atasca-se de tal modo no seu retratado que estas duas presenças acabam por se dissimular uma na outra, e impedem-nos de as destrinçar com facilidade, se de todo. A presença de uma repercute-se na da outra, incessantes.

Falei, a propósito de outro livro, da ascensão e integração daqueles sinais a que se dá o nome de “outsider art” nas artes contemporâneas, sobretudo na banda desenhada. Os traços gráficos de Teresa Câmara Pestana desfazem-se dos elos historicistas que insistem no primitivismo das artes africanas, no seu domínio decorativo, funcional, ingénuo – e, seja como for, isto é verbalizado pelas palavras de A.C. São raras as vinhetas que se pautam pela claridade legível mais típica da banda desenhada, onde a personagem principal se inscreve numa indiscutível unidade espácio-temporal, de acção, de sentido, etc. As imagens e a plasticidade das formas e dos sinais ganham nestes desenhos um valor de presença carregado, que não revela de um emprego metafórico – outro modo de diferenciar, de estranhar – mas antes de uma cidadania que pretende ecoar essa derrocada de fronteiras. O mundo outro é aqui. Vejam-se as discussões em torno das três manchas que acompanham, ou melhor, são qualquer mulher e homem: a sua sombra, a sua alma, o seu duplo (de extremo interesse, por serem “separados à nascença” de nós mesmos, mas que “andam sempre por perto” apesar de “não devemos ver”; mais, “significam morte iminente”: separar-ajuntar-separar-ajuntar até à mescla final, de resto, idêntica à inicial... Este movimento é contínuo em Postais...).
Porém, se todo este jogo contínuo de movimentos compassados e de sombras se faz ao nível da inscrição visual, isto é, a própria construção de Postais de Viagem, é devido à vontade de a autora procurar a genuidade dessa relação, desse intervalo intransponível. Assim, o desvendar dessa imperfeição torna esta obra mais justa do que aquelas outras que pretendem dissimular essa distância através de elos românticos ou mais mitificadores ainda do que a ebriedade que os mitos locais permitem, e à qual A.C. se entrega.
Nota: agradecimentos a Teresa Câmara Pestana, pela oferta do livro.
Uma crítica brilhante, uma análise profunda, um estendal imenso de cultura.
ResponderEliminarNa crítica sobre banda desenhada, tinha de aparecer um dia uma escrita de referência. Aí está ela, pela pena privilegiada do Pedro Vieira Moura. Ganha a BD, ganham os autores, beneficiam os leitores. A blogosfera, no quadrante da BD, sobe a elevado nível nestes nacos de prosa ensaística.
Um estendal imenso de cultura! Essa é boa! É verdade, sim, mas LerBD é também um autêntico bloco de aço impenetrável, onde rapidamente somos tragados por entre diégeses e narratologias.
ResponderEliminarAgradeço, como sempre, as palavras do meu amigo Geraldes Lino. Aceito, de bom grado, que os meus textos sejam vistos como "prosa ensaística", por razões que expus nos comentários do post aquando da entrada no Público online.
ResponderEliminarJá a parte do "brilhante" é mais duvidosa, porque levanta mais questões do que as que responde (um dos melhores críticos da imprensa nacional de banda desenhada, João Ramalho Santos, e muito bem, disse que eu "obscurecia" por vezes os textos; todavia, essas trevas são propositadas, já que moldando o modo como um objecto luz , poderemos descobrir-lhe novos contornos). Quanto a "um estendal imenso de cultura", é totalmente falso: conheço uma meia-dúzia de coisas, nomeadamente das áreas de estudo que julgo pertinentes aproximar da banda desenhada, e aplico-as o melhor que posso, nada mais.
O último anónimo não deixa de ter razão sobre algum grau de impenetrabilidade, mas julgo que esse grau não é muito diferente daquele que surge numa aproximação académica dos objectos em questão. O problema está em que a esmagadora maioria dos leitores está habituada a rápidos comentários, apreciações epidérmicas, notas marcélicas (percebem?), ou "estrelinhas" e "bola branca/preta" q.b.
Espero, espero - presunção minha - que crie um desafio com estes textos.
De resto, respondo sempre. Há questões? Façam-nas que respondo. Discordam? Digam que discuto. Errei? Corrijam-me que agradeço. Querem alertar-me para uma outra perspectiva, propor uma nova direcção, dizer de vossa justiça? Façam favor, que isto tem porta aberta!
Já o “não gostarem disto”, não posso fazer nada.
Pedro Moura
o caro Pedro, tenho a dizer, escreve muito bem. É pena é "perder-se" (você não, mas nós leitores) no meio daquele emaranhado crítico que lembra algum do pior academismo. Podiam ser simples sem cairem na lógica da bola preta ou da estrelinha(aqui ninguém espera isso, julgo eu) mas optam por densificar os textos. Em alguns, há sempre uma ou outra parte em que desisto de ler.
ResponderEliminarJá em relação às palavras de Geraldes Lino sinto um tom de ironia nelas, não sei porquê. Espero não estar a fazer uma leitura apressada dessas mesmas palavras.
Em relaçáo "ao não gostarem", não tome o que acabei como uma crítica, ou que não gosto dos seus textos. Pelo contrário, continue... Bem haja de quem pense sobre BD.
Ao "anónimo" (essa fuga para o anonimato tira alguma responsabilidade às suas palavras, mas, como menciona o meu nome, sinto-me obrigado a responder-lhe:
ResponderEliminarO seu "feeling", em relação à tal ironia que sente nas minhas palavras, quando elogio os textos críticos de Pedro Moura, atraiçoou-o (desejo que isso não lhe aconteça muitas vezes).
O que eu disse não tem a mínima conotação irónica, as minhas palavras transmitiram linearmente aquilo que eu pretendia dizer.
Admito que o caro anónimo (porque será que na internet tanta gente escreve sob anonimato?) possa ter alguma razão quando considera impenetrável os textos de Pedro Moura, apenas num aspecto: para se ler um texto necessário se torna estar ao nível cultural de quem escreve. Haverá outros críticos e ensaístas mais acesíveis para outros níveis culturais na blogosfera. Não será quem escreve que tem de se adaptar às múltiplas camadas de níveis culturais, serão os leitores que escolherão, para leitura habitual, os críticos e as prosas que melhor entenderem.
Corrijo: acessíveis (e não acesíveis). Gralha devido à rapidez da teclagem.
ResponderEliminarEm tempo, ainda:
ResponderEliminarPara que o "anónimo" possa confirmar a seriedade da minha apreciação no que se refere ao blogue Ler BD (logo, à tarefa crítica/ensaística do respectivo bloguista Pedro Moura), peço-lhe o favor de visitar o sítio da Bedeteca de Lisboa, no endereço www.bedeteca.com
e visitar a rubrica "Dossiê", no tema "Movimentos",relativo a 2007, na alínea "Internet", e ali constatará que considero aquele espaço crítico internético o meu preferido, por, como lá escrevi, "aliar o brilhantismo literário à seriedade crítica".
Caro anónimo, saudações bedéfilas.
Não posso dizer que seja uma grande admiradora de leitura mas de vez em quando gosto de ler. Ler e escrever. Escrever é desabafar, contar, criar, renascer e viver em simples páginas de papel, Ler é conhecer é apreciar. Todas as pessoas têm um dom, e o seu talvez seja mesmo esse, escrever! Nos seus comentários (aos comentários dos outros) usa um vocabulário tão preciso, que dá gosto de ler! :')
ResponderEliminarBoa Sorte! Continue escrevendo e se afundando em palavras e sentimentos, simplesmente... escrevendo! :'D