Na excelente secção de comentários a Un Gentil Garçon, de Béatrice Maréchal (igualmente tradutora), explicita-se a pertença da obra de Shin’ichi Abe ao género de banda desenhada conhecido como watakushi manga, ou “banda desenhada do Eu” em japonês (a primeira palavra é o pronome pessoal no seu modo mais formal). Mais, explica a tradutora que existem “dois conceitos estreitamente ligados e característicos” deste território, sendo o primeiro o naimen, que Maréchal traduz como “for intérieur” mas alertando de imediato para que não se o entenda como informado pela psicanálise ou as estratificações freudianas, sendo tão-só uma “dimensão íntima, inexprimível” do ser humano. Poderíamos eventualmente pensar num termo como alma. O segundo conceito está marchetado no seio do primeiro, e dá pelo nome de kurai: deve-se entender isto como uma “face escondida” do naimen, “a sua parte sombria e dolorosa, socialmente inibida”. A primeira face é inexprimível, a segunda, sombria. Todavia, nada impede a que não se faça um esforço de as tornar dimensões passíveis de uma traduzibilidade pela obra de arte.
Estes quatro livros de Shin’ichi Abe foram publicados com pequenos intervalos entre si, em três editoras diferentes, e faz parte do lento mas assegurado movimento de descoberta de um panorama mais amplo da mangá, e mais interessante e rico, com tudo o que esta frase implica de temperamental e de juízo de valor, sem desculpas. (Mais)
A (leve?) distinção entre essa tipologia - watakushi manga - e aquela da gekiga serve para explicitar a matéria, ou o tema, desses trabalhos, mas em termos históricos e de territorialização ambas se encontram no mesmo patamar, quer por encontrarem as suas origens no mesmo espaço – a publicação Garo e outros títulos relativamente próximos, como a mais recente AX, quer por aproximarem nomes de uma vertente da banda desenhada japonesa mais actual, intelectual, emocional, pessoal, e na qual se encontram nomes como os de Suzuki, Tatsumi, Tsuge, Shinji Nagashima e Masuzo Furukawa (que foi artista, mas hoje é administrador da imensa cadeia de lojas de mangá no Japão, a Mandarake). Essa proximidade é sentida de modo directo, pela citação de alguns desses artistas nas próprias histórias (algumas personagens comentando a Garo, por exemplo), ou até mesmo pela sua participação enquanto amigos de Abe ou personagens (os casos de Suzuki e Furukawa). A inscrição absoluta destas obras na autobiografia não é, porém, nem taxativa nem simples, uma vez que apenas através de informações extra-textuais é que a podemos considerar, como se verifica na obra-prima de Tsuge, O Homem sem Talentos, ou nas pequenas lembranças da adolescência de Jun Hatanaka.
Um outro signo que emerge quase de imediato pela leitura destas histórias é a da melancolia. No entanto, e eis como retornamos ao paradoxo da expressão do inexprimível, não se pode falar de algum modo de uma “melancolia autobiográfica”, pois a melancolia vivida não se expressa de modo algum: o seu peso de gravidade absorve qualquer esforço de expressão. O facto de estarmos perante obras criadas, que revelam de um esforço de expressão, apenas nos permitirá ver a melancolia enquanto matéria de exposição. A variedade das personagens, portanto, permite que com a obra de Abe estejamos perante uma contínua análise e exposição da melancolia.
Há um ou dois momentos em Les Amours de Taneko (Seuil) em que se fala de algo que parece morto mas está vivo. É essa, parece-me, a imagem mais adequada ao trabalho de Abe, mesmo em relação ao seu desenho – que poderemos mesmo dizer ser, em múltiplas ocasiões, “feio”, “mau”, “fraco”, sem condescendências para com expectativas do belo ou do equilibrado (nesse sentido, ainda que de modos diferentes, Tsuge e Suzuki e Tatsumi ainda se esforçam, e o primeiro conseguindo-o sublimemente, para se aproximarem da beleza). Algo que aparentemente é morto, mas vive sob a superfície do cadáver. Encontrar a vida mesmo na morte aparente, a chama mesmo nas cinzas. Não há aqui uma melancolia em si mesma, portanto, mas antes a sua superação pela parte do artista. A exploração da melancolia é um acto de poesia, isto é, de um fazer. Se a melancolia fosse real, do autor na sua vida empírica, não haveria obra criada. Os livros parecem vogar em torno de um mesmo centro, ainda que este seja incerto, informe. É depois do facto de que nos apercebemos das características comuns, dos traços que concorrem nestes livros diferentes para um mesmo ponto. No caso de Abe, como nos casos dos grandes autores, o que importa não é esclarecer (qual esse ponto seria, por exemplo, ou identificar o centro), mas sim o seu gesto diametralmente oposto: opacificar. Pois é como que lançando um facho de trevas que brotam as luminárias sobreviventes, é apagando que se revela o que estava escrito e oculto.
Há em Shin’ichi Abe um trabalho de dupla segmentação, a duas escalas. A escala maior deve-se à organização destes volumes franceses, que acreditamos seguirem princípios do trabalho original, que acoplam histórias curtas ou médias sem aparente ligação. No entanto, a leitura revelará pequenos princípios que as unem nessa ideia de “livro uno”, que as tornam em peças independentes mas concorrendo a um mesmo fim, uma narrativa geral. O mel da consubstanciação é trazido pela leitura contínua dessas peças. Por outro lado, numa menor escala, mas não menos importante, e talvez ainda mais significativa no que diz respeito à caracterização do trabalho do autor, ao seu estilo, é a fragmentação no interior da narrativa, alcançada por elipses mais alargadas entre as vinhetas, grandes saltos na focalização narrativa, desvios permanentes do “presente narrativo” para “janelas de memória”, e estratégias visuais que poderão levantar algumas questões sobre a continuidade – balões por preencher, presença de textos que não se parecem complementar, vinhetas silenciosas e panorâmicas, situações e informações solitárias, acções que não se preenchem nem concluem, interrupções. Os vários estilos gráficos a que o autor parece recorrer – aqui mais acabado e “correcto”, ali mais “desprendido”, apenas reforça esta sensação.
Por exemplo, ainda no volume de Os Amores de Taneko, vemos incluída uma outra história, intitulada "Vingança". A primeira grande diferença em relação ao que se acabara de ler é o estilo de desenho. Subitamente somos confrontados com um modo de desenho totalmente diverso: maior correcção anatómica, sombras mais carregadas (um uso sistemático, muito denso, de tramas por sobre todos os objectos, personagens e espaços), um ritmo muito mais pausado na representação dos movimentos, havendo mesmo momentos em que apenas se alternam os rostos dos dialogantes. Uma sinopse esgotaria os eventos, mas, mais uma vez, não são os eventos que compõem uma história a matéria na qual reside a força de Abe.
Une bien triste famille (igualmente da Seuil) é um livro mais coeso, fechado numa narrativa demarcada (o que não significa que todos os vazios sejam preenchidos, todas as dúvidas dissipadas, nem que todos os intervalos sejam superados): em torno de uma mina de carvão na antiga vila de Chikuho (em Fukuoka, na ilha de Kyushu, berço do autor) em 1906. Apesar de sermos leitores de uma situação relativamente delimitada no tempo, um punhado de dias nos quais se dão os eventos desta história - como diz a apresentação do livro, uma “comédia humana que se joga em condições implacáveis” – Shin’ichi Abe está a explorar duas outras camadas do tempo, a um só tempo. Por um lado, algo que lhe pertence à sua experiência pessoal, uma vez que é explicitada a origem do artista como estando associada a um meio mineiro tal qual o retratado no livro; por outro, remete a um momento em que o Japão estava na curva descendente já da transformação que vinha sendo operada desde há muito, transformando o antigo país feudal, arreigado a princípios seculares e a uma organização social tradicional numa nova nação votada ao desenvolvimento rápido em termos económicos, sociais e políticos (começava a crescer enquanto potência colonial e industrial). Um desenvolvimento, ou melhor, um crescimento da quantidade, já que a da qualidade não era para todos: de certa forma, as personagens que são retratadas em Une bien triste famille são todas “vítimas” dessas transformações, são aqueles cidadãos que se encontrarão a mais nessa nova realidade. Independentemente dos acontecimentos precisos que cabem a cada personagem, independentemente do quinhão de fortuna que se lhes distribui, no fim das contas a justiça não lhes é servida, e a “tristeza” anunciada no título é universalmente compartilhada. O estilo muda mais uma vez neste livro, no qual o desenho de Abe se torna de novo menos rigoroso, ainda que claro, por um lado, no que diz respeito à caracterização e identificação física das personagens, e denso, por outro, na medida em que emprega toda uma recorrência de padrões (dos quimonos, das estruturas em que os homens vivem, nas tramas simples e cruzadas para representar o céu, a terra, o que eles contêm...).
Paradis (na Picquier Manga) lança-se também a essa camada da memória autobiográfica das origens. A única forma de nos apercebemos disto é, como já aventámos, através de informações extra-textuais, uma vez que os textos em si mesmos não nos permitiriam perceber o necessário plasmar do protagonista com a do narrador (mecanismo da narrativa) e do autor (personalidade empírica), como sucede em Taneko, e muito menos de que o território – espacial, temporal e temático - de Une bien triste famille e Paradis lhe pertenceria enquanto raiz. Mas onde o primeiro título apresenta uma história contínua dividida em episódios, cada um dos capítulos que compõem Paradis apresentam uma história diferente, e que apenas por um exercício de abstracção e associação de pequenos elementos que transitam deste para aquele capítulo, fora de qualquer ordem demonstrável, se podem entender como coordenadas umas com as outras. Entenderá o leitor, portanto, ser este um movimento constante e multímodo de Abe.
Por exemplo, existem dois episódios em Une bien triste famille em que se dispensam as falas das personagens e se apresenta uma secção longa na qual se desenvolve uma acção simples – num deles, três personagens a regressar à vila mineira, no outro, um responsável fazendo exercícios matinais de kendo – e as informações textuais nos são transmitidas por uma voz externa, como se de um narrador literário se tratasse: essas informações criam um contexto mais alargado dos acontecimentos do que o das acções representadas, quer através de um historial da meteorologia quer da história entrelaçada do fim dos clãs e do advento da indústria mineira e das alterações sócio-económicas que ambas as situações entabularam. É como se fosse um tomar distância – a criação da camada de tempo superior a que me referi acima – para repesar os acontecimentos moleculares do próprio livro. É como se fosse para esclarecer o mais possível a inexorabilidade e o peso dos acontecimentos maiores sobre a fortuna daqueles menores, aos quais assistimos. Dir-se-ia que este livro em particular de Abe é aquele que mais se coaduna com o espírito de tomada de posição de resistência política (revolucionária, de esquerda, se preferirem, e as referências intertextuais são bastantes) do seu tempo (a série havia sido publicada em 1975).
Essa distância tomada pela voz de um narrador externo, cuja forma de visibilidade maior se dá na presença de um texto dito recitativo (já que o sempre presente narrador externo dos meios visuais, pela própria estrutura do espaço onde se inscrevem as imagens, nomeadamente o enquadramento – presente mas diferente no cinema e na banda desenhada -, passa muitas vezes desapercebido: a sua ultra-visibilidade diluí-se na ilusão de uma invisibilidade), é recorrente e também se nota em Paradis. Podendo, pelo que entendemos (v. atrás), ser a voz do narrador confundível com a da personagem principal e autor, a razão desta distância explicar-se-á por desdobramento, como que uma vontade de tomar balanço dessa situação (entendida, portanto, como passada) e repensá-la à luz das suas consequências. Pode essa distância revestir-se de ironia, vergonha, até mesmo desprezo. Como se essas memórias do que se passou não nos pertencessem, ou melhor, não pertencessem à pessoa ali agindo que parece coincidir de algum modo com a que aqui conta essas acções, mas como se se tratassem de duas pessoas de facto diversas, e a presente nutrisse algum grau de nojo (no seu sentido pleno) pela outra.
Esse desdobramento torna-se ainda mais claro, ainda que graças aos comentários apensos pela tradutora, em Un Gentil Garçon (pela Cornélius, e a melhor de todas estas edições, quer por razões editoriais quer por razões físicas do objecto-livro, quer ainda pela própria natureza particular das histórias aí reunidas). É estoutro livro também unido por um princípio “pequeno”, que voga na vida dos jovens que, num Japão de grandes oportunidades e crescimento económico, habitam apenas as margens desse rio. É a pobreza e a dificuldade em estabelecer o chamado “plano de vida” que aqui se explora, mas sem quaisquer tipo de agendas directas, proselitismo político: é como se se tratasse apenas de uma constatação de factos. Um peso que se exerce sobre as personagens. Amores desfeitos, oportunidades delidas, suicídios adiados. E, de novo, uma espécie de autobiografia diluída que mais nos oferta um “bloco de sensações” do que uma certeira e decisiva “compreensão” sobre a vida do personagem/autor. Das onze histórias reunidas neste volume, dez são de um período entre 1970 e 1976, e uma última de 1994, após o “retorno” do autor (remeto à leitura da sua biografia, para que se torne claro o significado profundo dessa palavra).
Há ainda uma outra constante na moral da obra de Shin’ichi Abe: a crueldade. A sexualidade está constantemente presente (um desvelamento do kurai, aqui já difícil de destrinçar de um entendimento psicanalítico mais palpável, cujas associações com a vida empírica do autor se tornam claras e, logo, motivo de ser entendido como a fundação de um signo recorrente, isto é, melancólico – mais uma vez enquanto elemento passível de expressão, e não inexprimível enquanto ela mesma -, indigestão de um pecado). Mas ela apenas surge enquanto tensão e violência entre o(s) casal(is), um exercício de crueldade reminiscente, para nós, de Georges Bataille (mas que nascerá antes de pulsões internas à cultura japonesa, na qual não faltarão exemplos menos ou mais obscuros). Nalguns textos, comparam-se estas histórias de banda desenhada de Abe com as dos filmes de Ozu, apelando à sua união pela “força da lentidão”. Todavia, essa aproximação apenas o é possível pelos efeitos de superfície: em Ozu não há crueldade. Há tristeza, melancolia, desamores, imprudência, por vezes malícia, erros, má fortuna. Mas crueldade, nunca. E em Ozu tudo é embrulhado numa doçura permanente, uma candura que escorre pelas relações humanas. Em Abe essa doçura evaporou-se por completo, deixando apenas à mostra as cruas e angulosas superfícies da dureza dos homens. Os caminhos que levaram a essa dureza são vários, desde o nascimento à natureza da distribuição social, às más escolhas no percurso e os muitos percalços que advêm da inconstância, mas a ele levaram certamente. E dá-se assim a procissão dos diversos personagens que a exibem. E, na mangá de que tenho conhecimento, este catálogo de dureza humana e melancolia é uma obra superna e profunda.
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