Este é um livro de banda desenhada polaco que me chegou por intermédio de Jakub Jankowski, professor de língua e cultura portuguesa (e sua tradução) na Universidade de Varsóvia (Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos, secção Luso-Brasileira), e coordenador de traduções de banda desenhada portuguesa para polaco (já se fez a d’A Pior Banda do Mundo, de José Carlos Fernandes, seguem-se outros títulos contemporâneos) e mantenedor de um blog sobre a banda desenhada portuguesa, além de artigos para a Cadernos de Banda Desenhada (em polaco, claro).
Significa esta introdução que a aproximação à sua leitura terá de ser feita por pequenos passos, uma vez que se trata de um objecto que me chega sem quaisquer elos anteriores que mo permitam inscrevê-lo num qualquer nicho confortável de referências. Não obstante, é a sua leitura efectiva que faz desprender manchas de sentidos.
Tal como algumas outras obras já aqui abordadas da banda desenhada contemporânea, e que parece ser uma estrutura ou uma maneira dominante, ŚmiercionoŚni (leia-se “Schmér-chianoshni”) é uma diegese coesa que emerge por apresentar, desse prisma, facetas aparentemente desconexas. Por outras palavras, uma rede omposta pela complexidade que emerge do cruzamento das linhas individuais de narrativas, aparentemente disjuntas. Havíamos visto o mesmo em Ice Haven, Wimbledon Green, Pascin, por exemplo. Há um grupo de personagens que não se cruzam entre si totalmente, mas estabelecem relações suficientes para que - com tempo e sucessivos episódios, em que a personagem secundária anterior se torna a principal contracenando com uma outra que depois assume o papel principal, etc. – possamos nos aperceber de como estabelecer essa rede.
A tradução do título, ŚmiercionoŚni, é “Os mortíferos”. No entanto, como o arranjo gráfico do título separa a parte integrante que se lê “Śni”, a qual é um verbo na terceira pessoa do singular em polaco e que significa “ele sonha”, aperceber-se-ão imediatamente de um jogo não só intraduzível como significante para o desvendar do livro. Este é o primeiro livro deste jovem autor, Łukasz Ryłko (leia-se "Wucas Reulco") nasceu em Cracóvia, em 1977, apesar de ter já feito outros trabalhos anteriores.
De facto, podemos ver este livro como uma alegoria sobre ou em torno da morte (e do tempo, literalmente o companheiro ou sócio da morte), mas também em torno do sonho. Alegoria poderia ser uma palavra-chave. O primeiro protagonista é um jovem que, em alguns aspectos figurativos e simbólicos recordará Tintin, Indiana Jones, Zig e Puce, e toda uma série de pequenos heróis crianças aventureiros. Ela vinga-se da Morte por lhe ter arrebatado o pássaro de estimação e, depois de ter recebido um cão de grandes orelhas, resolve ir procurar a Morte no seu próprio palácio e “matá-la”. O episódio que dá conta destes acontecimentos intitula-se “Castigo”. As ligações simbólico-herméticas são relativamente claras, ainda que disfarçadas de conto de tom infantil: uma gaiola aberta, o voo vertical para o outro nível, o arrancar do olho da morte, e até o cão psicopompo. Os cinco episódios seguintes – no interior do livro, ainda que cronologicamente sejam apresentados desordenadamente - vão mostrando o fim de um rol de personagens que, apesar de encontrarem também a morte, por vezes a sua mesma, mostram como que uma espécie de revolta. Temos uma mulher obesa que seduz um homem (um sósia de Harold Lloyd) e termina num pequeno momento de voo libertário, um escritor sem sucesso que acaba por tentar um pacto com o diabo (conseguindo-o, mas de uma maneira inédita), uma ninhada de ratos que se vinga de um gato (descobrindo que se trata do diabo), um detective que procura uma boneca raptada e termina ele próprio sequestrado (de maneira misteriosa) durante um espectáculo teatral/de marionetas/de magia, e um velho chapeleiro que, depois de ver a mulher morrer, tem uma ideia para um novo chapéu (e que é usado por todas as personagens citadas atrás, sendo um dos objectos que permite a reconstrução da ordem do tempo cronológico).
Em cada um deles, a presença de objectos, criaturas personagens facilmente identificáveis, e até mesmos gestos heráticos, faz pensar numa determinada ordem do simbólico, ligeiramente disfarçada nestes tons leves, mas que pretenderá, talvez, apontar a um outro nível de complexidade.
Por outro lado, estando indicado que se trata de uma série a continuar, esta desconectividade poderá ou ser rematada por um sentido último, ou continuada numa crescente complexificação destes estratos e disseminação pelas personagens.
Apesar de ser raro surgir um diálogo ou onomatopeias (inclusive na queda de um edifício), as palavras estão quase sempre presentes, espalhadas nos cenários, em escritos, ou nos nomes de negócios (uma carrinha de mudanças chamada “Caronte” remete-nos a alguns dos jogos, nalgumas ocasiões, de J.C. Fernandes, ainda que o autor português seja bem mais subtil que Ryłko. Livro a preto e branco, há uma instância onde surge o vermelho, a saber, no contrato que o escritor quer fazer com o diabo, apontando assim para um nível fora e/ou acima da diegese em que se inscreve. De um certo modo, espelha o movimento geral do livro, o qual, apresentando algo que se encerra nas suas folhas – as histórias, os acontecimentos “visíveis”, as personagens “vivas” – indicia a existência de uma continuidade paralela, para além dele mesmo.
Nota: agradecimentos a Jakub Jankowski (e Agnieszka Rusinowska), não só pela oferta do livro, mas pelo seu apoio na sua tradução e troca de impressões para chegar a este artigo (as informações linguísticas e sobre o autor são todas dele, obviamente).
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