O trabalho de Susa Monteiro, a cada novo episódio de presença, apenas remata a ideia de que não estamos perante uma autora “em desenvolvimento”, mas uma artista cuja desenvoltura e força de figuração é clara, não obstante o território em que deseja se expressar seja, as mais das vezes, o da obscuridade. No texto, “Iconografia da Solidão”, de Paulo Monteiro na última Splaft! (no. 4), publicação da Bedeteca de Beja, que dá conta da exposição de Susa Monteiro e da publicação deste A Carga, abrem-se as suas considerações indicando como as características mais prementes do trabalho da artista o intimismo e a poesia. Não discordando totalmente, importa porém precisar como é que poderemos entender estas duas palavras no trabalho de Susa Monteiro.
Estou em crer que poderemos chamar de “intimista” àqueles trabalhos onde o autor se revela a si mesmo, quer nos traços mais largos e ribombantes da sua vida quer nos momentos aparentemente mais inócuos mas mais estruturantes da sua vida quotidiana. Apenas a título de exemplo, e bebendo da autobiografia, onde se espraiarão com mais consistência essas revelações, falemos de Debbie Drechsler para o primeiro dos casos e Harvey Pekar para o segundo. Naturalmente, os autores podem ainda construir espaços totalmente ficcionais nos quais deambulam as suas personagens fictícias, mas com elas revelar o que de mais íntimo poderá existir na esfera humana: com pequenas flutuações “para fora” da autobiografia, lembremos Shin’ichi Abe ou Baudoin, imersos na ficção, falemos de Pedro Nora com Jessica Khane ou de Kevin Huizenga. Nenhum destes é o caso de Susa Monteiro. Parece-me antes, e aqui sigo ainda Paulo Monteiro, que a intimidade revelada por Susa Monteiro se encontra nas imagens recorrentes do seu trabalho, as quais surgem como signos obsidiantes representativos de um qualquer fantasma por revelar: esqueletos, pássaros, terra aberta, céus plúmbeos, uma esmagadora maior presença de homens em relação a mulheres, sendo eles normalmente estilizados de modos idênticos, com rostos angulosos e rugosos, barbudos, de corpos redondos e pesados como pedras, como se se tratassem antes de golems ou criaturas telúricas, do que homens como nós. É a recorrência destas figuras que permite desenhar um perfil psicológico, mapeável, interpretável da obra crescente de Susa Monteiro. Não caiamos em tentação: esta intimidade, esta leitura interpretativa deve ser sobre a obra e não a autora, não tendo nós qualquer direito a exercer psicologia (barata) sobre a sua pessoa. Apenas nos permite ler, tentativamente melhor e mais, as suas bandas desenhadas.
Estes temas, estas matérias e figuras, que até agora surgiam como personagens ou objectos das suas histórias (sem indicação do contrário, escritas por ela), materializam-se de novo aqui mas numa história mais concentrada, quase linear, de contornos precisos e até reconhecíveis. A Carga relata em 18 pranchas a complicada e atribulada lenda de São Vicente de Fora, nascido em Saragoça, verdadeiro padroeiro de Lisboa. É como se os elementos que até agora se constituíam como singularidades dispersas e a experimentar convergissem em torno de um centro temático, pata poder também experimentar uma outra forma de fazer poesia.
Susa Monteiro dispensa a biografia do santo, abrindo-nos a narrativa já em presença do seu cadáver. Aqui está, de novo, a presença de outro aspecto recorrente na autora, que é a presença da Morte, não uma morte aterradora e última, mas antes algo como um território a partir do qual se nos tornasse possível começar a viver, mesmo que a viver num outro tom, mais atento a subtilezas, a estranhezas, a fulgurâncias que nos possam surgir no caminho.
São Vicente está presente não enquanto pessoa, personalidade, figura tutelar de um imaginário até, mas “mais como corpo anónimo”, para voltar a citar Paulo Monteiro. Anónimos são também todas as outras personagens em seu torno: os marinheiros que o acodem, que o sepultam, que o desenterram e enviam no caminho a Lisboa. Tão anónimos quanto os corvos que pontuam a narrativa (a abertura e o fecho) e o rei que conquista os Algarves e manda vir o corpo do Santo - Afonso Henriques, que mandou vir o corpo, Afonso III, que terminou a conquista do Algarve, ou antes já Sancho II?; são antes todos eles, reunidos na forma de um rei compósito, como manda a lei das lendas. A narrativa em si voga também por águas vagas, nunca desocultando os nomes próprios dos lugares, dos intervenientes, das datas. Todavia, existem indícios, palavras, figurações, que vão permitindo deslindar o caso associando-o aos “factos da lenda”: o sepultamento do corpo no Promontório Sacro (Sagres), o rei, como se afirmou, e antes disso a queda dos reinos visigóticos nas Espanhas e o advento dos reinos muçulmanos, que se toma como “interrupção” dessa continuidade viva do cristianismo.
É irónica, portanto, mesmo que indesejada, a sua representação não por um santo vivo mas apenas pelas suas relíquias, cadáver tornado ícone, um amor que nasce pela coisa morta, mas não que desponte para além dela. Estará aí a força de Susa Monteiro, a de sempre colocar estas duas pulsões nos seus palcos, mas sem jamais tomar partido, e mostrando a fraqueza de ambas.
Por acaso não me podem indicar onde encontrar este livro? Fiquei muito curioso, mas nunca o vi nos meus locais habituais...
ResponderEliminarCaro Bruno,
ResponderEliminarDe facto, não será fácil encontrá-lo nos locais habituais (em Lisboa, se estiver em Coimbra será fácil encontrá-lo, julgo, na Dr. Kartoon). Aconselhava ou contactar directamente a Bedeteca de Beja ou, passo a publicidade, esperar pela Feira Laica em Julho na Bedeteca de Lisboa.
Obrigado,
Pedro Moura
Correcção: A Feira Laica está marcada para o dia 28 de Junho, na Bedeteca de Lisboa.
ResponderEliminarAbraço
Obrigado, Zé. Já agora sabes-me dizer se vocês terão estas publicações presentes, pela Imprensa Canalha ou pela Chili com Carne ou algo assim?
ResponderEliminarEspero que sim...
Até já!
Pedro