Procurar os sinais neste livro que o tornem passível de ser tratado de “autobiografia” não é fácil. Mas eles existem. Não é somente a coincidência do nome entre o autor e a personagem principal, nem a presença do nome do autor no interior do texto, na capa do livro escolar da personagem que vemos de imediato na primeira prancha (o que leva à mescla entre personagem principal e autor, meio-caminho andando para cumprir o “pacto autobiográfico” explicado por P. Lejeune): trata-se antes da verificação de que a atenção para com essa mesma personagem não se cinge somente aos acontecimentos em seu torno, ou por ele protagonizados, mas a possibilidade de lhe entrar na alma, perscrutando-lhe a moral, o humor, os afectos. Nada disto é conseguido através do texto, pois não existem praticamente falas ou legendas no texto, e quando umas ou outras se verificam, são tão objectificadas, são tão circunscritas ao interior da acção que não chegam a tornar-se discurso vivo (como na cena do jogo, das duas pranchas seguidas aqui mostradas).
Pascal Matthey publicou um livro anterior a este, Le verre de lait, no qual explorava já a matéria da memória a que Pascal est enfoncé dá continuidade. e é cultor com um punhado de amigos de um fanzine mensal intitulado Soap (que tem um blog) e de uma outra série, Spouk. Através desses outros trabalhos, podemos verificar que Matthey explora estilos diferentes, traços diferentes e queremos acreditar que cada um deles corresponde a vontades e direcções diferentes do seu trabalho. Pascal est enfoncé pode-se resumir, num repente, como “autobiografia”, mas tem particularidades específicas que merecem alguma atenção. A maioria das obras desta tendência contemporânea – e pode-se exemplificar com L’Ascencion du Haut Mal, de David B., Persepolis, de Satrapi, o contínuo da obra de Baudoin, e mesmo (menos auto, mas não menos memória) Le Photographe e La Guerre d’Alan – coloca quase sempre o narrador a assegurar de que se trata de uma memória, isto é, algo que é resgatado do passado à luz do presente. Através das estratégias da voz do narrador, de analepses, de interrupções do fluxo narrativo, conseguimos sempre delinear a linha do passado rememorado e contado e a do presente enquadrante. No caso do livro de Matthey, o mesmo não ocorre. Somos colocados de imediato, e de lá não saímos, num tempo coeso e fechado em torno do quotidiano do Pascal-personagem, uma criança com os seus momentos de aprendizagem escolar, de lazer, de férias com a família, de episódios caseiros, de fantasia. É através de um exercício de esforço e de procura pelas pistas extratextuais que conseguiremos fazer reenquadrar todos esses eventos no “passado” do próprio autor.
Essa opção tem uma consequência imediata, que é corroborada pelo traço de Pascal Matthey (neste trabalho em particular): é a absoluta nitidez. Não há espaço para a dúvida ou a abertura. Isto não é uma fraqueza, ou uma limitação: é antes uma especificidade do livro, sua característica (sem juízo de valor) e sua força (aqui, sim, valorativo).
Em muitos dos passos, há uma escolha pela representação das personagens em corpo completo, ou cortados num plano quase geral, que nos poderá recordar das estratégias vetustas da “teatralização” da banda desenhada tal como ocorria em autores como Outcault (sobretudo em Buster Brown), Winsor McCay, Charles Forbell ou Herbert Crowley: representam-se sempre as personagens a uma mesma distância, de modo a que entendamos as suas acções o mais claramente possível e integradas na totalidade do seu espaço de representação. Por vezes, todavia, existem estratégias contrárias, de uma grande proximidade, mas ao invés de empregar essa aproximação para desvelar um qualquer tipo de virtuosismo em construir pormenores ou cenários carregados, Matthey prefere antes uma estruturação icónica, como que subtraindo tudo aquilo que menos interessa para se centrar no essencial do que há a mostrar/dizer. Nesse sentido, está muito próximo do trabalho da memória, tal qual Henri Bergson o desenhou, não como algo a mais, mas algo a menos: trata-se de uma selecção de um número maior de elementos. Veja-se esta página em que se representa uma cena em que se joga Pictionary (há quase que um movimento de plasmação entre as regras desse jogo e as regras do livro). Há aqui um uso absolutamente icónico (ícones diagramáticos, no sentido de Peirce) das imagens, como que recortado de um eventualmente maior espaço de representação. É uma outra forma, quiçá, do que se deseja chamar “minimalismo” na banda desenhada, mas prefiro vê-lo tão-somente como uma estratégia variada e inteligente de coordenar a nossa leitura aos significados máximos (precisamente através de signos mínimos) do que está a decorrer nesse momento. E Matthey parece optar por encaminhar o leitor de um modo directo, sem desvios ou interpretações dúbias e secundárias.
Tal qual os movimentos da memória, verificam-se em Pascal est enfoncé vários elementos que os mimam: não há propriamente uma trama central que una todas as acções do livro, mas antes uma atomização de cada recordação, não as transformando em episódios propriamente ditos (como sucede em La Guerre d’Alan), mas permitindo-os distinguir ao longo do contínuo (todas as pranchas apresentam a regularidade das 2 x 3 vinhetas); existem passos que dão conta das pequenas ignorâncias e dúvidas do pequeno Pascal, ou de uma palavra, ou de um conceito, ou de uma surpresa, mas que são imediatamente superadas pela ajuda dos seus ou do dicionário ou da sua aprendizagem no mundo (como quando aprende da televisão e da mãe o que aconteceu a Kennedy em Dallas) e, mais tarde, o empregará para ganhar no jogo de Pictionary; repetem-se momentos do quotidiano, como a oração nocturna, o intervalo do corpo e da imaginação antes de adormecer, os jogos e brincadeiras, os desenhos que faz, como modo de pontuar e criar a ideia dessa espiral de aprendizagem, de desenvolvimento, de rememoração e, enfim, da vida em geral.
Pascal Matthey publicou um livro anterior a este, Le verre de lait, no qual explorava já a matéria da memória a que Pascal est enfoncé dá continuidade. e é cultor com um punhado de amigos de um fanzine mensal intitulado Soap (que tem um blog) e de uma outra série, Spouk. Através desses outros trabalhos, podemos verificar que Matthey explora estilos diferentes, traços diferentes e queremos acreditar que cada um deles corresponde a vontades e direcções diferentes do seu trabalho. Pascal est enfoncé pode-se resumir, num repente, como “autobiografia”, mas tem particularidades específicas que merecem alguma atenção. A maioria das obras desta tendência contemporânea – e pode-se exemplificar com L’Ascencion du Haut Mal, de David B., Persepolis, de Satrapi, o contínuo da obra de Baudoin, e mesmo (menos auto, mas não menos memória) Le Photographe e La Guerre d’Alan – coloca quase sempre o narrador a assegurar de que se trata de uma memória, isto é, algo que é resgatado do passado à luz do presente. Através das estratégias da voz do narrador, de analepses, de interrupções do fluxo narrativo, conseguimos sempre delinear a linha do passado rememorado e contado e a do presente enquadrante. No caso do livro de Matthey, o mesmo não ocorre. Somos colocados de imediato, e de lá não saímos, num tempo coeso e fechado em torno do quotidiano do Pascal-personagem, uma criança com os seus momentos de aprendizagem escolar, de lazer, de férias com a família, de episódios caseiros, de fantasia. É através de um exercício de esforço e de procura pelas pistas extratextuais que conseguiremos fazer reenquadrar todos esses eventos no “passado” do próprio autor.
Essa opção tem uma consequência imediata, que é corroborada pelo traço de Pascal Matthey (neste trabalho em particular): é a absoluta nitidez. Não há espaço para a dúvida ou a abertura. Isto não é uma fraqueza, ou uma limitação: é antes uma especificidade do livro, sua característica (sem juízo de valor) e sua força (aqui, sim, valorativo).
Em muitos dos passos, há uma escolha pela representação das personagens em corpo completo, ou cortados num plano quase geral, que nos poderá recordar das estratégias vetustas da “teatralização” da banda desenhada tal como ocorria em autores como Outcault (sobretudo em Buster Brown), Winsor McCay, Charles Forbell ou Herbert Crowley: representam-se sempre as personagens a uma mesma distância, de modo a que entendamos as suas acções o mais claramente possível e integradas na totalidade do seu espaço de representação. Por vezes, todavia, existem estratégias contrárias, de uma grande proximidade, mas ao invés de empregar essa aproximação para desvelar um qualquer tipo de virtuosismo em construir pormenores ou cenários carregados, Matthey prefere antes uma estruturação icónica, como que subtraindo tudo aquilo que menos interessa para se centrar no essencial do que há a mostrar/dizer. Nesse sentido, está muito próximo do trabalho da memória, tal qual Henri Bergson o desenhou, não como algo a mais, mas algo a menos: trata-se de uma selecção de um número maior de elementos. Veja-se esta página em que se representa uma cena em que se joga Pictionary (há quase que um movimento de plasmação entre as regras desse jogo e as regras do livro). Há aqui um uso absolutamente icónico (ícones diagramáticos, no sentido de Peirce) das imagens, como que recortado de um eventualmente maior espaço de representação. É uma outra forma, quiçá, do que se deseja chamar “minimalismo” na banda desenhada, mas prefiro vê-lo tão-somente como uma estratégia variada e inteligente de coordenar a nossa leitura aos significados máximos (precisamente através de signos mínimos) do que está a decorrer nesse momento. E Matthey parece optar por encaminhar o leitor de um modo directo, sem desvios ou interpretações dúbias e secundárias.
Tal qual os movimentos da memória, verificam-se em Pascal est enfoncé vários elementos que os mimam: não há propriamente uma trama central que una todas as acções do livro, mas antes uma atomização de cada recordação, não as transformando em episódios propriamente ditos (como sucede em La Guerre d’Alan), mas permitindo-os distinguir ao longo do contínuo (todas as pranchas apresentam a regularidade das 2 x 3 vinhetas); existem passos que dão conta das pequenas ignorâncias e dúvidas do pequeno Pascal, ou de uma palavra, ou de um conceito, ou de uma surpresa, mas que são imediatamente superadas pela ajuda dos seus ou do dicionário ou da sua aprendizagem no mundo (como quando aprende da televisão e da mãe o que aconteceu a Kennedy em Dallas) e, mais tarde, o empregará para ganhar no jogo de Pictionary; repetem-se momentos do quotidiano, como a oração nocturna, o intervalo do corpo e da imaginação antes de adormecer, os jogos e brincadeiras, os desenhos que faz, como modo de pontuar e criar a ideia dessa espiral de aprendizagem, de desenvolvimento, de rememoração e, enfim, da vida em geral.
Algumas dessas repetições tornam certas sequências dotadas de um misterioso ritmo (Le verre de lait é todo ele um exercício desta estratégia): mostra-se uma curta sequência, que depois de repete com uma ligeira diferenciação, variação, retomada de novo com um novo grau de informação e de novo e de novo, a cada novo tomar sempre com um passo a mais ou um passo a menos, o que nos permite a nós mesmos, leitores, reler as acções contrárias como pertencendo a uma sequência maior, mais longa e de certo modo mais completa, ainda que vejamos cada uma das suas instâncias de um modo fragmentado.
Ainda uma outra característica através da qual se pode integrar Matthey na tendência da autobiografia contemporânea em banda desenhada, com um grau de diferença, é o facto de que incluiu na sua história outras bandas desenhadas. Tal como David B., Baudoin, Fabrice Neaud e outros incluem nos seus trabalhos outras bandas desenhadas, de modo a fazer uma “recuperação da memória da banda desenhada” no seio do seu próprio trabalho, como quem instaura uma tradição para depois se integrar nela, também Pascal Matthey reserva páginas do livro para que faça emergir páginas de outros livros, nomeadamente das aventuras de Boule et Bill, personagens da série infantil de Jean Roba. O grau de diferença indicado acima diz respeito ao facto de que não se trata propriamente de uma instauração da tradição na qual Matthey se deseja inscrever e diz respeito antes, em concordância com o movimento e tom geral da memória tal qual surge em Pascal est enfoncé, ao(s) livro(s) que lia enquanto criança. Ou seja, uma vez que o espaço de rememoração presente-passado não existe neste livro, não existe esse filtro e peso em presença nesta memória, mas sim a representação desses eventos como se os recontasse sem os reviver, não faria sentido repesar as bandas desenhadas a integrar de um ponto de vista político e estético do seu trabalho actual, mas antes um honesto demonstrar das leituras de infância.
Esse peso do actual sobre o passado está ausente, a ductilidade e dubiedade das memórias também, e o propósito de ofertar uma sequência clara e nítida, sem quaisquer sombras de culpa ou escusas e desvios, é cumprido.
Nota: agradecimentos a Pascal Mathey, pela oferta do seu livro.
Esse peso do actual sobre o passado está ausente, a ductilidade e dubiedade das memórias também, e o propósito de ofertar uma sequência clara e nítida, sem quaisquer sombras de culpa ou escusas e desvios, é cumprido.
Nota: agradecimentos a Pascal Mathey, pela oferta do seu livro.
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ResponderEliminarolé!
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