O objectivo geral de David Beronä com este volume é fazer um historial de um conjunto relativamente coeso de narrativas em imagem, sem texto, todos produzidos na primeira metade do século XX, e apontá-las como um elo indispensável no desenvolvimento do que ele chama, em inglês, de “modern graphic storytelling” (aproveitando as palavras de Will Eisner a propósito de Lynd Ward). Apesar de existir como que uma tradição, muito antiga, que faz pensar nos Volksbuch – “livros populares”, com ilustrações em xilogravura, que surgiram com o advento da imprensa móvel no fim da Idade Média, e no qual se conta o Bilder des Todes de Hans Holbein -, Beronä cinge-se a um intervalo menor entre 1918 e 1951, mas pelo contrário não se cinge somente aos ciclos em xilogravura como qualquer outro livro com qualquer outra técnica, desde que cumpra aproximadamente um mesmo programa narrativo.
O que vemos, porém, não é um trabalho de historiador, em que a argumentação nasça dos factos ou das pontes que associem indelevelmente as obras arroladas. Este é um livro que nasce de uma vontade arquivística e de bibliotecografia, de breve taxinomia e descrição, mas que acaba por não conseguir reviver o espírito contínuo das obras entre si, ou destas com o corpo maior que conhecemos por banda desenhada. Os capítulos que se vêem dedicados a cada um dos livros arrolados, dizíamos, acabam por apresentar textos que não são mais do que pequenas sinopses um tanto ou quanto fastidiosas, em que a valoração é mais pessoal do que argumentada (o único caso em que isso se altera, como veremos, é Lynd Ward).
Os trabalhos reunidos neste livro têm qualidades diferentes, muitas vezes incomparáveis. Entendo perfeitamente que existem elementos superficiais em comum entre alguma da obra de Frans Masereel, o He Done Her Wrong de Gross e Eve de Myron Waldman – precisamente o elemento que se encontra no título: “livros sem palavras”. Mas para além dessa característica, tudo o resto se desagrega e puxa em direcções diferentes, as quais não se podem reaproximar. Masereel é um autor de uma profunda e forte vontade política, com um tom moral igualmente superior a qualquer denominação ou dogma. Gross apresenta uma variação em papel do vaudeville e das aventuras a que o cinema havia habituado o seu público. Waldman simplesmente cria uma noveleta de amor singela. Beronä acaba por misturar a ideia de justiça, o encontro do que é equilibrado para cada um, o respeito pela individualidade, e o direito, medida idêntica aplicada a todos, como se todos tivessem a mesma superfície a medir (mas veremos que não é verdade, dada a atenção desmesurada, em todos os sentidos, que dá a Ward).
Não há dúvidas de que Beronä procurou uma especialização, e apesar da obra de Masereel, Otto Nückel, Lynd Ward e Giacomo Patri ser acessível nos nossos dias, e há livros aqui que são uma descoberta retrospectiva: o Childhood, da checa Helena Bochořáková-Dittrichová (publicado em Londres em 1931, e ainda que apenas um grau de variação dos livros em xilogravura de mestres como Masereel, uma perspectiva feminina contudente), My War, do húngaro István Szegedi Szüts (de que apresentamos aqui uma imagem: um relato da vida militar, num tom anti-militar, dado através destas pinceladas mínimas reminiscentes da caligrafia chinesa, e igualmente de Londres e de 1931), e ainda o Alay-Oop (1939), de William Gropper, no caminho do qual já Seth nos havia colocado, e que se presume seja alvo de uma reedição para breve. Mas isto não suprime os problemas de argumentação mais profundos.
Uma nota no início do livro explica que deixou alguns títulos de fora, por se tratarem de biografias ou de livros cujo propósito era o proselitismo religioso, por exemplo. Mesmo que aceitemos que a razão – que Beronä não dá – de que esses livros teriam um propósito mais limitado do que aqueles que são lidos – e só se o poderia afirmar depois de os lermos e a dúvida permanece (imagine-se numa discussão em torno da banda desenhada tout court, dispensar o Buddha de Tezuka ou o Che de Osterheld e os Breccia), o autor ainda diz dispensar “anomalias”. Esta palavra é assim apresentada, seguindo-se logo uma lista de cinco títulos, entre os quais o recentemente reeditado Scottsboro, Alabama: A Story in Linoleum Cuts, de Lin Shi Khan e Tony Perez, associado ao movimento comunista norte-americano dos anos 30, e Mitsou, do então jovem Balthus. Todavia, esta nota não me parece suficiente (já que não há qualquer argumento utilizado) para explicar a razão da sua ausência num livro que se propõem explicar a emergência deste modo de criar livros de narrativas desenhadas sem texto, e muito menos associá-las ao contínuo que existe – um contínuo cheio de flutuações e interveniências, sem dúvida, mas ainda assim um contínuo – entre os primeiros livros de Töpffer e o que hoje se edita. Penso que uma noção demasiado contemporânea da “graphic novel” preside o ponto de partida de Beronä e isso torna-o “aspectualmente cego” a uma leitura mais ampla, inclusive historicamente.
Em nenhum local se fala da obra de Palle Nielsen, Orpheu og Eurydike (de 1955), ou de um dos livros dos romances-colagem de Max Ernst, Une Semaine de Bonté (de 1934, o facto de ser colagem não deverá ser impedimento, pelo que indicámos da inclusão de outras técnicas, e o aparecimento esparso de palavras também não é critério em Beronä), da obra de Peter Newell, e de outros que eventualmente se pudessem constituir como exemplos de um mesmo campo que David Beronä parece indicar existir, mas sem jamais descrevê-lo, circunscrevê-lo e torná-lo pertinente. Mais, para depois integrar esse corpus no tal contínuo maior de que o autor diz fazerem parte estes livros. Em suma, pouca argumentação central que torne claro o espectro que o autor desejaria, pelo que se entende até do título completo do livro, cumprir.
Um outro ponto de contenção é a defesa que faz de Lynd Ward em detrimento de Frans Masereel. Num ou noutro momento do seu texto, diz que onde Masereel era mais “rude”, Ward alcançara uma maior desenvoltura do traço. E analisa a profundidade do seu trabalho de um modo muito mais marcado do que o fizera em relação a Masereel. Digo que este é um ponto de contenção pois vejo exactamente o contrário. Masereel integrava-se na tal tradição que bebia de fontes com séculos de duração, com grandes tradições de esquerda, e de uma profunda e culta raiz europeia, em que não obstante se transcreverem em imagens os movimentos das personagens como imbuídos numa ideologia, haveria sempre espaço para o livre arbítrio dessas mesmas personagens, face ao mundo que desafiavam. No caso de Ward, o proverbial peso do “destino” é por demais visível, e por vezes de uma maneira ditatorial. Ward, em algumas das suas obras raia mesmo o kitsch.
Kitsch aqui deve ser entendido como uma ultrapassagem da forma em relação à sua função, ou de uma excessiva presença do seu aspecto material em relação ao teor daquilo que deseja transmitir. Já aqui havia falado de um livro de Ward, God’s Man, sobre o qual havia alertado à excessiva visibilidade desse teor material. Uma das formas de assinalar o kitsch, ou o camp, como os americanos o rebaptizaram e Sontag o bem estudou, é o seu exagerado maneirismo, o exacerbamento de uma característica qualquer, que existiria num estado natural mais sereno no seu território original. Ward abusa da figuração daquelas personagens que representam funções-tipo fáceis de ler: o “capitalista”, o “artista sensível”, o “louco”... E as figuras as mais das vezes são entregues numa figuração cuja expressividade ora roça o histrionismo mais espalhafatoso e melodramático possível (e no qual incorrem quase todos os desenhadores contemporâneos norte-americanos que trabalham no mainstream; independentemente dos valores outros que conseguem alcançar) ora cai numa inexpressividade total que se quer fazer passar por “dignidade”, “superioridade” ou algo do género, tal qual a arte kitsch do panfletário Realismo Soviético. Além do mais, a entrega a um trabalho do detalhado não tem a ver com ultrapassar um certo grau de “rudeza” (palavras de Beronä) que existiria em Masereel, mas sim com esse fascínio pelo virtuosismo, a capacidade superna do domínio de um instrumento, o rodriguinho, o maneirismo já desprovido de sentido, o decorativo. Se Ward é um elemento de profunda influência na banda desenhada vindoura, sobretudo a de acção e aventura, não tenho dúvidas, mas isso não o iliba – nem aos que o seguiram – desses desvios e desequilíbrios de peso. Masereel, pelo contrário, é um clássico, em todas as acepções da palavra tal qual listadas por Italo Calvino.
Wordless Books é um livro muito belo (pelas imagens que inclui, e o seu arranjo) e merece ser uma referência numa biblioteca de história da banda desenhada e territórios contíguos. No entanto, todas as suas estratégias – papel de uma espessura considerável, inclusão de muitas imagens, apresentação dos textos em curtas entradas descritivas de cada livro – tornam-no de facto mais num “livro de referência” do que num volume de história, de considerações inovadoras e iluminadoras, etc. E até mesmo em termos de liberdade de pensamento, de associações livres para criar um saber próprio, fica muito aquém do que parecia prometer. Nesse sentido, o livrinho de Seth foi muito mais... ambicioso não é a palavra, porque isso revelaria de um propósito agendando a priori, e é mais de uma feliz descoberta. Seja como for, é de uma amplitude maior e de uma profundidade de pensamento mais vincada. Mesmo em relação a “livros sem palavras”, o mais importante não é dizer “muito” ou “pouco”, mas “dizer alguma coisa”.
Nota: agradecimentos a Domingos Isabelinho, por ter dado o mote a este post, e a uma palavra emprestada.
Muito interessante o seu blog! Parabéns pelo trabalho.
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