Este livro é pequeno e apresenta apenas 8 histórias (uma por cada personagem), todas elas contadas de quatro a oito pranchas, seguidas de uma, digamos, splash page ou poster. No entanto, a leitura não é rápida de modo algum. Estamos perante um tratado das várias estações da vida e comportamento humanos, das paixões que no movem e unem enquanto espécie, das unidades que nos compõem e sobrevivem, quer alterando-se na roupagem quer disfarçando-se em novas peles. Apesar de existirem estas oito personagens com as suas histórias particulares, elas parecem estar aí, actuando, em nosso nome colectivo e, estando todas sob o escrutínio – abstracto, no título, na ideia oculta do livro – do “Doutor Salgari”, o que acaba por se fazer é uma psicanálise de todos nós.
As razões para esta diminuição da velocidade da leitura, e daí a uma maior concentração dos sentidos profundos do que é exposto e explorado, encontrar-se-ão na profusão de texto, na sua distribuição aparentemente ilógica ou sem hierarquia na prancha, na utilização, aqui e ali, de uma grande vinheta central e várias outras, menores, espalhadas em torno, obedecendo a um princípio organizativo que torna a acção e a leitura bastante claros, até lineares, de certa forma, ainda que a vinheta central possa ser “lida” várias vezes, à medida que voltamos a atravessá-la depois de ler as outras vinhetas. Digamos que há um maior peso na clareza e linearidade, mas não deixa de existir a potencialidade desses outros desvios e alternativas. As vinhetas são as mais das vezes pequenas ou estreitas, como que “interrompidas” pelas legendas e balões, encurtando a visibilidade da cena, e lançando-a num estranho dinamismo. Quase que obriga a uma leitura cinésica, a movimentos de nos agacharmos ou de nos alçarmos frente a essas interrupções para poder vislumbrar os rostos das personagens, o objecto oculto, a completude da cena. A junção desse arranjo das vinhetas à composição da prancha acentua as suas próprias particularidades da permanente tensão entre o legível e o visível existente na banda desenhada. Estamos perante um domínio dos mecanismos da découpage e da mise en page que permite essas aproximações intrincadas e multíplas.
Quanto às imagens finais que fecham cada história, os tais posters, não terá de corresponder necessariamente a um coroar da mesma, mas antes a uma condensação e sublimação (de novo, os termos da psicanálise) dos acontecimentos relativos a essa personagem, mas sempre com desvios estranhos (personagens outras que nunca tinham aparecido, mas que são recorrentes de história para história – um centauro, uma criatura boschiana -, um novo cenário, uma relação inesperada entre as partes, etc.). São essas imagens as que preparam a ideia total de um grupo coeso e organizado entre si, de símbolos universais. Tudo concorre para essa interpretação.
As personagens são heteróclitas e uma breve descrição de algumas demonstrará o tipo de absurdo aqui presente: um robot de limpeza de um submarino que sobrevive à tripulação (ao mundo todo) e assume os objectivos bélicos da missão; um Jeremias a quem se atribuem todos e quaisquer assassínios no mundo e que é perseguido por todos, sendo a um só tempo bode expiatório e lamentador oficial; um cobarde que, de uma família de cobardes, ou é ainda mais cobarde por mentir sobre a sua coragem é corajoso por dar fim à cobardia; um homem que espera uma espécie de felicidade mas se perde nos meandros de um combate contra todas as raças da morte. Cada uma dessas personagens pertence a um universo diegético próprio, diríamos mesmo incompatível uns com os outros, mas uma vez que a lógica e o naturalismo não são características centrais em El gabinete – aquilo que parecia um relato passado nos tempos bíblicos é atravessado por uma frota de aviões, o fim do mundo congelado revela-se paisagem por onde passa uma diligência – nada nos impede de as associar umas às outras. E há pistas subtis, visuais, de uma história para a outra, que leva à ideia de que existirá um intervalo de partilha entre todos. Por exemplo, a história La Torre parece ser não apenas aquela onde a sua personagem, um ancião quase eterno, se move, mas igualmente um espelho de todo o exercício narrativo de El gabinete del Doctor Salgari: uma espécie de aleph de toda a nossa cultura, onde as divisões de tempo e espaço e cultura não fazem sentido na memória de quem as experienciou (directamente ou pela leitura), um espaço que é o livro onde o movimento das páginas permite que as histórias (e personagens, e universos) se cruzem, se misturem, se intertextualizem. Para mais, o termo de ligação encontra-se no título: todas são pacientes do Doctor Salgari. É na capa que esse encontro é dado, assim como na badana, numa lustração em que todos esperam no consultório, e no texto de apresentação. É como se existisse uma ficção adicional distribuída pelo espaço peritextual do livro. Aliás, quer o prefácio quer o posfácio se entregam a um daqueles exercícios apócrifos que, mesclando uma apreciação crítica do livro, ainda acrescentam mais elementos de ficcionalização. Por todas estas características, José Carlos Fernandes é obrigatoriamente um ponto de comparação com este trabalho de Valenzuela.
Uma das mais correntes palavras para falar deste último autor, e que pode ser perfeitamente aplicada a Santiago Valenzuela, é a de que se trata de um autor “culto”, mas em ambos os casos o que importa é, em primeiro lugar, a transformação das referências – no caso do autor português, presente através das citações antroponímicas, sobretudo – que se transformam em sugestivas associações e, em segundo lugar, a capacidade com que se iluminam as fontes dessas referências com os seus novos jogos. Ora, nesta última capacidade, Valenzuela é mais coordenado e programático (J.C. Fernandes segue uma poética diferente, já debatida) e mesmo nos casos em que constrói uma quase caótica e aparentemente fortuita concatenação de referências acaba por fazer emergir um tecido muito coerente e até crítico da História, da Cultura, enfim, daquilo a que infelizmente se tornou banal, não o sendo de modo algum, chamar de condição humana. Aliás, o posfácio ao livro, tão apócrifo e divertido quanto o prefácio, analisa cada um dos episódios, e todo o livro, como se se tratassem de casos psicanalíticos, utilizando os instrumentos prometidos por Freud. Escreve-se mesmo que se “psicoanalisa Deus”. A assunção assim de cada personagem de uma das camadas da psique ou das pulsões humanas torna-se clara, assim como as transformações que cada um desses papéis, digamos básicos, vão sofrendo ao longo dos contextos. A identidade do Dr. Salgari é desvendada no último episódio ou conto, o qual é um dos mais surpreendentes e acabados. É curioso que, até certo ponto, Valenzuela utiliza as referências já citadas um pouco como, por exemplo, Neil Gaiman, mas em vez de subsumir essas fontes à escrita circunscrita a uma fábula – por mais interessante, inteligente, fascinante que ela seja – transforma-as em matéria para criar um texto livre, aberto, sugestivo, artisticamente mais poderoso. E é esse último bloco que “fecha o ciclo” e “explicita” os gestos todos, fechando assim também o “gabinete”, que deixa de ser um gabinete de curiosidades para se tornar num judicioso arranjo tipológico da vontade dos homens.
Emilio Salgari, Amigo de España
ResponderEliminar