Autor incontornável do grupo dos críticos e teóricos franceses da banda desenhada (especialmente em torno das suas apreciações esteticizantes sobre a obra de Hergé, com Hergé Ou Le secret de l'image e Hergé Ou La profondeur des images plates, já para não falar da fundação dos conceitos, para a banda desenhada, de “linéaire” e “tabulaire”, e a direcção da agora quase mítica Communications no. 24), este novo livro reúne uma série de textos curtos, alguns deles antes publicados, de uma natureza a um só tempo crítica e celebrativa, de uma inclinação ascendente iconófila (suas palavras). O aspecto sobretudo frisado por F.-D. é o da “escrita gráfica”, quer dizer, este específico trabalho de uma enunciação que passa pelo gráfico e que, assim, permite a união num só discurso (contínuo, no interior do livro) a apreciação daquilo que o autor discerne como “formas longas”, as bandas desenhadas – o que não carece de maior explicitação, apesar do autor fazer um contínuo desdobramento das suas especificidades -, e as “formas curtas”, falando, à vez, dos “desenhos segmentados”, dos “desenhos dilatados”, e dos “desenhos estreitos”. (Mais)
Precisemos estes últimos termos, segundo o autor. O desenho segmentado é aquele em que há um “processo de resgate” (p. 131), podendo surgir aqui tiras, séries de caricaturas, rebuses/enigmas, como os de [Philippe] Honoré, magníficos, como o aqui mostrado. São imagens nas quais a leitura “consiste no ajustamento do exame [égrènement] (o linear) sobre um todo que é, a um só tempo, o pretexto e a soma (o tabular)”. Imagens as quais escapam dos valores meramente formais (ou gestaltistas) do que apresentam e do representam, mas nas quais “a natureza do meio é determinante no tratamento da matéria” (137). Aproveitando-se do conceito de semiogénese de Michel Tardy, que se explica como “a transformação, pelo efeito contextual, da informações de um texto (icónico ou não) em signos”, explica-se a concorrência do facto de a imagem ser um postal, ou de estar editada num determinado contexto físico (uma revista dedicada a um tema particular), ou das suas cores – o facto das imagens estarem a preto-e-branco neste livro impedem uma clareza nalguns dos argumentos do seu autor – para a elaboração desse sentido holístico. Ou seja, não é somente um gag, algo a que se chega por acumulação, mas em que o “fim” reverte de novo para o esclarecimento de todos os passos anteriores, estejam estes divididos ou não em termos de “vinhetas” ou “momentos”. [Quanto ao enigma glífico ou gráfico de Honoré, tem como título/pista “Le poète suffrit de trop de talents différents, mais pas sa vie mondaine”; “leiam-se” os objectos na imagem em francês; a solução está no fim deste artigo]
O desenho dilatado ou exagerado toma um sentido alegórico. Sendo os que mais perto estão do efeito tabular, ou melhor, da tela, no jogo “centrípeto” da pintura (132), são aquelas imagens únicas que demonstram uma ideia qualquer, e todos os seus detalhes, usualmente em grande número, concorrem para o transporte dessa mesma ideia. Os exemplos estudados por F.-D. são as “parábolas de Silas” (Winsor McCay) e uma capa de Sempé. As primeiras fazem parte da última fase, madura, do criador de Little Nemo, e acompanhavam os editoriais do jornal American: Fresnault-Deruelle não afirma isto, mas muitas delas partiam de uma tradição vetusta americana que pode encontrar as suas raízes em Thomas Nast, criador ou melhorador da esmagadora maioria das figuras simbólicas dos E.U.A. que hoje reconhecemos (Uncle Sam, o burro democrático, o elefante republicano, o Santa Claus), na qual McCay introduzia a sua patente mestria gráfica, visão política particular, e capacidade de renovação. Há como que uma tensão dramática nessa imagem única, uma tensão de significados, que associa essa a toda uma série de referências, interpretações e, claro, lições. [esta imagem foi retirada da biografia de McCay escrita por J. Canemaker; as imagens no livro de F.-D. estão truncadas e são de muito má reprodução]. Quanto à capa de Sempé, apesar de ser de uma revista francesa de música, faz parte do trabalho continuado que o artista havia produzido para a New Yorker, em que imagens espaçosas encerram os seus protagonistas num espaço de solidão ou de grande distância dos demais, e cuja ausência de legenda nos obriga a ponderar todo e qualquer gesto gráfico para desvendar o sentido fino.
Finalmente, o desenho estreito é aquele em que afluem todos os usos - gráficos, naturalmente - das figuras de retórica: os oxímoros, as hipérboles, as elipses, a repetição e a condensação, os quais implicam uma entrega da parte do leitor um “certo gosto pela restituição do não-dito, pela tomada de atalhos, ou pelo sincretismo de formas ‘precipitadas’” [i.e., de acumulação ou cruzamento de signos] (132). O autor estuda toda uma série de cartoons de imprensa, mas também se recorre da obra de Topor (de que aqui apresentamos um dos exemplos). Havendo uma qualquer transformação sobre a própria figuração, surgindo nonsenses ou “metáforas visuais” (que discutimos com Cronin), precisa-se que nestas imagens, “não são tanto as formas do mundo o que se exagera como as relações metafóricas dessas formas entre si” (paráfrase, pg. 171). Estas imagens incomodam, no sentido em que fazem surgir formas totalmente inesperadas no mundo, mas a sua interpretação revela ora uma tradução literal de uma ideia que de a utilizarmos todos os dias, nos esquecemos da violência que apresenta (“rir de orelha a orelha”) ora nos obriga a entender as fronteiras difusas de uma situação, o que leva às acusações, esclarecimentos, e fulgurantes desvendamentos de que os cartoons editoriais são tantas vezes capazes.
Quanto às bandas desenhadas, apenas indicaremos que, nas leituras que faz de McCay, de Edgar P. Jacobs, de Francis Masse, de Emmanuel Guibert com La Guerre d’Alan, de Spiegelman com ISNT, de David B., e de M.-A. Mathieu com ...Révolu... (e ainda acrescentando um texto de Jean Arrouye sobre Dolorès, de A. Balthus, Schuiten e Peeters), e da obra de Phillipe Geluck, Le Chat, como um território de união da formas indicadas, vai procurando sempre uma análise plasmada à linguagem específica de cada uma das obras, procurando os seus sentidos mais justos, e entregando-se sempre ao seu exercício favorito de eleger “vinhetas especiais” para as interpretar de um modo particularmente minucioso. “Extrair as imagens do continuum (real ou imaginado) do qual são parte integrante, revelar-lhes a inteligência, e depois colocá-las de novo no seu sítio, incita o amador [amateur] a uma leitura activa” (187). Assim reconhece que essas imagens vivem numa “mecânica de suspensão”, permitindo a sua “ambivalência” (um velar e desvelar a um só tempo), fazendo do “evitamento ou do litotes [o dizer pouco para dar a entender mais] o seu regime” (17). O facto de a banda desenhada, em relação às “formas curtas” debatidas, que são “autocentradas” (131), serem um espaço no qual é permitido uma maior exploração e desenvolvimento, expansão e estruturação não altera essa natureza de, dizemos nós, desequilíbrio das imagens, o que é um traço de força, de susceptibilidade do desencadeamento da leitura, da acção e do sentido, e não uma fraqueza (por exemplo, em relação a outros ramos artísticos no qual a imagem una concentra a sua existência). Essas imagens são “eficazes”, e “revela o seu valor no facto de se dar de um modo provisoriamente incompleto, ao mesmo tempo seduzindo enganosamente [faisant miroiter] o leitor, dando-lhe a entender que haverá sempre oportunidade de a completar” (14). Relacionado com o encadeamento dessas imagens, o movimento de completamento, Fresnault-Deruelle diz que o espaço intervinhetal ou intericónico (os espaços em branco entra cada quadradinho) são como que um “espaço de prestidigitação” (138).
O que lhe importa é, portanto, sublinhar a “função poética” destas artes, entendendo como esta a “melhor adequação possível” (entre o modo como se diz e o que se diz) ou o “trabalhar os seus próprios efeitos discursivos” (121). Numa palavra, a especificidade deste modo de expressão.
Pierre Fresnault-Deruelle, sendo professor de Artes Visuais e outras disciplinas correlatas, e autor de livros em torno de questões artísticas, não somente confinadas ao território da banda desenhada, proporciona-nos uma competência (a nível de um saber profissional) e um engenho (uma capacidade de surpresa, de iluminação pessoal) que desemboca nestas reflexões abstractas em torno dos seus objectos. Não estamos perante uma crítica jornalística, naturalmente, nem de uma mera descrição tecnicista ou arquivística das obras abordadas. Todavia, também não se entrega a um exercício livre, diremos mesmo alucinado (mas não menos inteligente, iluminador e culto) como o Tom McCarthy, ou o de uma associação pancultural poética (quer no sentido literário quer no de um fazer) como o de Christian Rosset. É uma escrita ancorada num saber disciplinado e que pretende dialogar com os instrumentos permitidos pelo discurso académico, fazendo aproximar os discursos vivos e primeiros de toda esta “escrita gráfica”, em que as “meias-palavras” se fortalecem por viverem enquanto imagens, às reservas de saber da filosofia, da arte, da semiótica, da literatura. À pergunta que colocada no início deste volume, “o que se passa nesta dependência [assujettissement]e, ao mesmo tempo, resistência da imagem à narrativa [récit] na banda desenhada?” (12), cada um dos pequenos ensaios-leitura responde.
Nota: a solução do rebus/enigma é “Gens – coq – tôt”, i.e., Jean Cocteau.
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