
O que importa aos dois autores é, para além das obras naturalmente de colaboração (dois exemplos, a Bíblia e as Mil e uma noites), digamos, colectiva ou cultural, é ultrapassar a ideia de que a colaboração não dá que pensar os termos literários (num sentido lato, artístico), e, oferecendo estas “histórias críticas, ou se preferirem, biografias de colaborações” (pg. 10), chegar àquele espaço que pertence não a este ou aquele autor, mas ao intervalo produzido por ambos. Estudam-se práticas e métodos de trabalho, descobrem-se traços das condições da sua origem, variações internas ao texto e retornos obsessivos de certos temas (paráfrase, pgs. 11-12), para construir esse retrato.
Sabendo-se a biografia de Hergé (tal como constituída pelos livros do próprio Peeters, a saber, Les débuts d’un illustrateur, Le Monde d’Hergé e Hergé, fils de Tintin – traduzido em Portugal pela Verbo – e a biografia de Pierre Assouline), não se trata aqui de descobrir novos factos ou desvendar segredos, mas antes procurar iluminar a questão de um modo mais concentrado. Passa-se pelos primeiros passos com o abade Wallez, a amizade frutífera com Tchang Tchong-Jen, a colaboração profissional com Alice Devos e depois Edgar P. Jacobs e Jacques Van Melkebe, a abertura do estúdio, as imposições de Louis Casterman, o impedimento da continuação de Tintin sem a sombra viva de Hergé.
Os autores querem fazer sublinhar particularmente qual a força que pertencia a Hergé em exclusivo, que era o aspecto da escrita, da direcção da vida da personagem, e que levou Hergé àquele grito final, análogo ao de Flaubert, de “Tintin (et tous les autres) c’est moi”. Este entendimento, que não descura “o desenhador virtuoso de uma desenvoltura elegante”, pretende sublinhar sobretudo Hergé, escritor (para pedir emprestado um título a Jan Baetens). O surgimento do atelier, a instauração de um funcionamento vertical de trabalho, que transforma o autor num “chefe de atelier”, mesmo que seja visto como uma “evolução quiçá inelutável, não é um progresso do ponto de vista artístico”. A sucessão de colaborações leva a uma crescente preocupação pelo detalhe, a exactidão da informação, o equilíbrio documental, a ancoragem na realidade, a complexificação das tramas, mas não leva nem a um ritmo de produção mais seguro nem a um maior patamar de qualidade (mesmo no interior do seu território da aventura infanto-jevenil). Uma das provas, digamos assim, é que a Maio de 1940, a um passo antes das colaborações criativas mais profundas com Jacobs e Mekebe, já havia Hergé criado, sozinho, oito aventuras do Tintin, quase todas as histórias do Quick et Flupke (Quim e Filipe entre nós) e de Jo et Zette [et Jocko] (Joana, João e o Macaco Simão). “O seu estilo gráfico havia-se afirmado ao mesmo tempo a sua perícia narrativa. As farsas desajeitadas do princípio haviam dado lugar a romances em imagens, alguns de entre os quais as suas primeiras obras-primas”. Fala-se portanto da sobrevivência de uma “desconfiança” de Hergé em delegar o seu trabalho principal, a saber, o da estruturação ou agenciamento da narrativa, o de “deixar às imagens a possibilidade de verdadeiramente conduzir a narrativa”. Preencher linhas, cores, cenários, letras, sim, mas a construção propriamente dita, nunca, o que levou a dissabores entre amigos e, também, no interior do próprio Hergé.


Estas colaborações, por mais temporárias e pontuais que fossem, foram inflectindo a obra de Hergé na direcção que tomou, foram aportando-a ao patamar que atingiu, podendo afirmar nós que houve um movimento de folhetim estereotipado a trabalho de relevo literário, de uma cartografia a uma geologia. Não é, de modo algum, tirar a Hergé o que é de Hergé, as suas qualidades e os seus defeitos, os seus merecimentos e os seus aspectos a criticar, mas simplesmente um modo de entender que uma obra, ta qual um homem, jamais é uma ilha.
Nota : agradecimentos a Jan Baetens, por me ter colocado na rota deste livro.
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